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2023
Aventuras na noite
Por
José Thomaz Brum

“...and that all these adventures were visions which they saw in their sleep”
(Tales from Shakespeare)

Tudo começa com uma viagem a Oslo. Noites de verão, espetáculo atmosférico. A noite nunca chega, nunca fica escuro, nunca um escuro completo. Permanência de um lusco-fusco. Consequência: presença obrigatória da luz, sem o repouso da escuridão. Parece que roubaram a noite e nos deixaram com uma luz estranha. Vigília permanente, sono suspenso, noite furtada.

As tapeçarias da obra Noite de verão foram compradas, uma delas em um bricabraque norueguês, em um galpão. Sobre elas foram aplicados patches (retalhos, fragmentos, sinais de beleza) que representam pequenas vampsstarlets em poses sensuais. Pequenos patches que jovens usam para enfeitar jeans. Sobre as tapeçarias decorativas foram aplicadas figurinhas de vamps, pequenos ícones pop desterritorializados. Como sempre o artista experimenta e vê se funciona. Mas uma necessidade estética empurra as figurinhas para dentro da paisagem nórdica: “aquele objeto quis ficar ali”.

Brechós, bricabraques, paraísos para um artista que carrega a marca surrealista. As paisagens presentes nas tapeçarias trazem a luz das noites de verão. A figurinha vermelha insere na paisagem morna o calor da vermelhidão.

Solve. Aventuras do artista na pintura expressionista. Ataque pictórico. Damasceno colorista, promovendo o entrechoque do desenho com a pintura. Vinte e cinco retângulos de alumínio onde foram pintados, em camadas, alguns desenhos. Presença simultânea da pintura, do desenho e do grafite. Cores vibrantes, intensas. Paira sobre Solve, acho, algo da paleta de Nicolas de Staël (1914-1955), pintor de origem russa, mestre do estilo abstrato e lírico. Tons contrastados, intensos. Cores que encenam o dramático, o trágico. Em Solve, respira-se essa atmosfera.

Cinelocus. Cristais chineses de vidro. Cores vibrantes (amarelo e laranja). Volta à cabeça do artista a memória visual dos fogos de Oslo. Fogueiras que celebram. Irrupções de luz que traduzem uma ênfase, um ritual. Cinelocus como um não objeto. Parece mais uma situação, um conglomerado perceptivo.

Geleia óptica. Mil borrachas de vedação de geleia norueguesa de groselha. Composição de uma grade, de uma trama. Grid transcendental. Se Solve é a dissolução alquímica, Geleia óptica é a condensação, Coagula. Isso se dermos um zoom e percebermos, em meio a luz encantatória, uma sustentação: condição de possibilidade da exposição.

Florestas da noite. O tigre que vem dos quadrinhos também é uma tapeçaria comprada em leilão na internet. Ele é emoldurado classicamente, com passe partout e tudo. O tigre é recortado e colocado atrás de linhas abstratas. Encarando o tigre, uma divisão em vidro cria o contraste entre vidro/não vidro. Jogaram o tigre na abstração, na selva noturna das simetrias. Daí Blake:

“Tyger, tyger, burning bright
In the forests of the night”

Móbile. Objeto para o cenário de um baile de carnaval. Decoração feita por um cultor das cores vibrantes (vermelho, laranja). Recorte rosa traz o jogo expressivo entre a forma e a cor. Rosa topográfico (parece um mapa), rosa Gestalt que mostra – em um lance perceptivo – espessuras que indicam animais, relevos, montanhas. Tudo em PVC, plástico industrial.

Fomos atravessados por sonhos plásticos eloquentes. Fomos guiados para casamentos inusitados feitos de colagens imaginosas. Podemos descansar vendo planos na parede, planos estabelecidos por vãos. Transparências e opacidades. Talvez vejamos uma bola na parede, uma bola aquosa, transparente. Talvez tropecemos em alguma representação enigmática de átomos, ou de algo que aluda ao sete de paus de jogos que não se jogam mais. Isto é, o Instrumento.

São evidentemente sonhos densos, complicados, cheios de enigmas (aliás, como todos os sonhos). Mas, estimulados por esses devaneios plásticos, podemos fazer nossas as palavras de Charles e Mary Lamb: “todas essas aventuras foram visões que ele viu em seu sono”.