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É Umas 12/05 >> 16/06/18

É Umas

12/05 >> 16/06/18
12/05 >> 16/06/18
Rodrigo Bivar
É Umas
Sobre

RODRIGO BIVAR
É Umas

Quem diz “é umas” diz o quê? Difícil saber. A frase tem um ar folgazão e uma falta de urgência que põem de lado a vontade e sua ansiedade. Esse arremedo de afirmação – que em geral funciona como uma quase-resposta a uma quase-pergunta – tem também uma displicência democrática, uma disponibilidade que deixa as alternativas em aberto, pois é justamente dessa ambiguidade que pode nascer o encanto do que virá a seguir.

O que as recentes pinturas de Rodrigo Bivar expostas este ano na Galeria Millan têm a ver com esse nome, que de resto nasceu despretensiosamente durante uma conversa sobre possíveis títulos para exposições de outro amigo artista? Quando o nome surgiu na conversa, de pronto fechamos com ele.

Há na arte desse jovem pintor – Rodrigo Bivar tem 36 anos – um flerte produtivo com vertentes da pintura moderna e traços bem-humorados indisfarçáveis, muito provavelmente advindos do interesse por Philip Guston e Claes Oldenburg. É umas...  Em sua terceira individual na Galeria Millan, em 2015, “Lapa”, Bivar abria mão de um figurativismo meio intimista, com forte marca do uso de fotografias, e parte para um trabalho em que sua aposta na pintura vai se revelar quase didaticamente – até pela trama geométrica, que ajudava a discriminar cores e faturas – na homenagem a artistas importantes para sua formação.

Günther Förg, ecos do veterano Eduardo Sued, Cássio Michalany, Paulo Pasta, Fábio Miguez, Fernanda Gomes, Richard Diebenkorn, Agnes Martin e tantos outros não eram propriamente citados, como ocorria com frequência na arte pós-moderna. Foram incorporados a sua pintura pela maneira de as cores empregadas por eles entrarem em formações e estruturas diferentes. Tratava-se de entendê-las produtivamente, e incorporá-las de forma experimental. Havia aí ao mesmo tempo a intenção de prestar uma homenagem e de estar à altura dos artistas admirados.

Arrisco uma hipótese sobre os quadros dessa mostra. Num momento de quase dissolução da pintura por uma série de sofismas contemporâneos – uns mais politicamente narrativos, outros mais cifradamente conceituais -, Bivar faz um recuo meio clássico, uma pausa, para conseguir continuar trabalhando. Mas não era umas!

A solução provisória era compreensível, mas séria demais. Agora, acredito que Rodrigo Bivar voltou a uma maior disponibilidade, sem a qual não se faz boa arte. Penso também que essa seja sua primeira exposição madura e autônoma. Todos os sete quadros expostos na sala da galeria são divididos ao meio por cores contrastantes e razoavelmente aleatórias, muito mais contemporâneas – por terem um descompromisso pop – do que modernas. O choque ou a justaposição entre as duas áreas de cor vai produzir fragmentos meio orgânicos – um recurso que Bivar tomou em parte dos relevos de Hans Arp, em parte de aspectos da pintura mais recente de Paulo Monteiro –, que ora espirram para cima, ora para baixo.

Esses retângulos figuram algo? Pode ser. Campos de futebol de botão, bolos de aniversário, cartazes, placas tectônicas, estandartes populares, páginas de jornal, a série dificilmente teria fim. Seja como for, eles não foram postos juntas à toa. Bivar procura uma unidade entre eles? Penso que aqui está o grande interesse dessa mostra. Sim e não. 

O artista não abre mão de tentar encontrar uma unidade no Grande Bazar Contemporâneo. Contudo não quer atribuir à arte um papel estruturante e unificador que ela dificilmente poderia vir a ter novamente, porque por ora sequer sabemos o que mantém mais ou menos unidas tantas práticas econômicas heterogêneas, tantas desigualdades nacionais e internacionais, tanta violência e indiferença.

Os respingos ou estilhaços que passam de uma parte do quadro para a outra podem lembrar vagamente o resultado malsucedido da tentativa de fusão de elementos que pouco têm em comum. É possível ver uma dimensão trágica nestes quadros de Rodrigo Bivar? Já não sei.... Por vezes tenho a impressão de que essas pequenas figuras que pontuam as áreas de cor têm mais a ver com uma contaminação progressiva de uma   superfície saudável, como uma doença que se espalha incontroladamente, como ocorre com o sarampo, a catapora, mas também com a peste bubônica, a terrível Peste Negra que dizimou milhões de vidas no século XIV.

O olhar de Rodrigo Bivar tem humor e crueza. Melhor dizendo. É a apreensão das ambiguidades de nossa época (o humor) que possibilita uma visada realista sobre o mundo. A vertiginosa mobilidade dos processos tecnológicos, com a crescente dificuldade de mapearmos as relações sociais que daí derivam, abrem ao mesmo tempo um vasto horizonte de perspectivas e uma volatilidade econômica que até agora não se conseguiu compreender e torná-la uma força política.

Nessa situação confusa continuam a existir posições políticas diferentes ou mesmo opostas? As pinturas de Bivar parecem sugerir que sim, embora fundamentalmente sua preocupação se concentre em explicitar a grande diferença entre os dois campos de cor dominantes e os eventos que ocorrem neles. Direita e esquerda ainda podem ter realidade.  Em todo caso, resta saber o que permanece como oposição neste mundo feito de cacos à deriva.

Essas telas têm campos opostos bem demarcados. Neles pequenas figuras irregulares impedem que uma geometria rigorosa organize o plano dos quadros. Como fungos ou bactérias elas sugerem uma expansão meio ameaçadora, justamente porque não podemos prever seus movimentos. Pode ser meio ingênuo aproximá-las dos novos movimentos políticos menos ansiosos pelo poder (feministas, homossexuais, ecologistas etc.). A afirmação da diversidade em princípio vai numa direção mais democrática. Há, porém, como mantê-la sem levar em conta o poder?

Aquilo que na pintura de Paulo Monteiro ainda parecia ser fenômenos episódicos, manchas que indicam a possibilidade de uma disfunção em nosso organismo, tornou-se na pintura de Bivar uma interrogação sistemática. E por isso essas pequenas áreas são estruturais em suas telas.

É umas? A arte não tem respostas. A pintura de Rodrigo Bivar satisfaz-se em continuar a interrogar uma realidade que reluta em mostrar sua face.

Rodrigo Naves