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2023
A idade do bronze
Por
Heloisa Espada

"Não existe sentimento que transporte para a exuberância com mais força que o sentimento do nada."
— Georges Bataille, O erotismo

 

Na calçada em frente à galeria Millan, a instalação sonora Funk-fuck-funck² de súbito introduz o público à exposição Visita íntima, de Vanderlei Lopes. Seus sons se misturam aos barulhos da rua Fradique Coutinho, como se a banda sonora da realidade estivesse com defeito. Da massa um tanto indistinta de ruídos despontam trechos de conversas, solfejados, desabafos, suspiros, choros, passos, sirenes, latidos, motos, carros, helicópteros e música. O material foi gravado em 2020, durante o período mais crítico da pandemia de covid-19, quando o artista, isolado em seu ateliê, registrou secretamente pessoas que, por necessidade ou escolha, continuavam a circular pelas ruas.  Interessava ouvir aquilo que pulsava em meio à atmosfera de morte e à sensação de erro no sistema. Em Funk-fuck-funck, a entonação das vozes e os vocabulários são como atos falhos. Os diálogos não contam histórias, mas comunicam ansiedades à revelia das intenções. Sobreposto aos sons do presente, o trabalho cria uma impressão de deslocamento que, de certa forma, caracteriza toda a exposição.

Visita íntima, cujo título alude aos encontros privados em prisões, sugere circunstâncias carregadas de afetos. Composta por um conjunto variado de esculturas de bronze, mais Funk-fuck-funck, a exposição mistura o que o senso comum costuma separar – excepcionalidade e banalidade, erotismo e religião. Em diálogo com o espaço expositivo, os trabalhos interferem no fluxo dos visitantes e na arquitetura. Não por acaso, a exposição coincide com a reforma da Millan, uma vez que a instalação de algumas obras — em especial a peça Espelho, de aproximadamente cinco toneladas, exigiu uma intervenção radical e arriscada na estrutura arquitetônica da galeria.

Espelhos são objetos sedutores e perigosos. Costumam ter superfícies perfeitamente lisas e reflexivas, de aspecto etéreo e transparente que, num passe de mágica, formam a imagem perfeita do que está à sua frente. Mas Espelho, de Vanderlei Lopes, impacta em primeiro lugar o corpo do visitante, com seu peso, densidade e volume. A escultura é um alto-relevo em formato de olho, com seis metros e vinte centímetros de comprimento, instalado no teto. A princípio, as figuras que compõem o trabalho são indiscerníveis, lembrando antes uma pintura all-over. Aos poucos, é possível identificar a profusão de falos, vaginas, cus, pernas, pés, peitos, cabeças, braços e mãos que embaralham o olhar. A moldura com rocalhas, feita do mesmo material do espelho, bronze polido, contém a explosão de corpos nus, submersos num mesmo amálgama. As cabeças estão enterradas nas carnes, com exceção dos rostos de duas mulheres cujas feições denotam uma mistura de êxtase e dor, como a Santa Teresa de Bernini. Às vezes é difícil diferenciar as figuras mergulhadas umas nas outras, em sucessivas penetrações. A imagem viva de quem transita embaixo da peça agrega à cena um aspecto fugaz. Ainda assim, o objeto tem um sentido de unidade, de continuidade. Os corpos lembram aqueles perpetuados pela erupção do Vesúvio, em Pompeia, no ano 79. De forma intencionalmente confusa, Espelho reflete nossos rostos e nossos corpos numa cena de orgia.

Visita íntima inicia com uma obra sonora, mas é sobre o ato de olhar. As obras em exibição, espelhadas ou não, discorrem sobre a relação fundante entre estética e sexualidade; evidenciam o quanto observar um trabalho de arte pode implicar em angústia e desejo, prostração e gozo. Segundo Bataille, somente a religião, o erotismo e a poesia são capazes de nos devolver o sentido de unidade que perdemos ao nascer e que só é reconstituído pela morte³. Ao aproximar erotismo e religião, Vanderlei Lopes transborda o racional e o normativo, assinalando a importância do olhar na constituição de seres desejantes e políticos.

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1. Excerto do texto que será publicado na íntegra no catálogo da exposição.
2. Todos os trabalhos da exposição foram executados em 2023, embora alguns deles já existissem como projeto antes.
3. Georges Bataille, O erotismo. São Paulo: Arx, 2004, p. 40.