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2023
A pintura como verbo
Por
Ivo Mesquita

Os trabalhos recentes de Mariana Palma indicam outra orientação em seu projeto artístico, um aprofundamento não no repertório histórico de referências em suas obras anteriores, mas na ourivesaria mesma da pintura, no aprimoramento do processo generativo das imagens, que transita entra a alta tecnologia e o mais refinado artesanato com tintas e pinceis. Mantem sua prática figurativa e representacional, mas opera um raciocínio mais abstrato, poético, privilegiando a linguagem pictórica sobre a narrativa, e com isso constituindo um imaginário original, marcado pela volúpia da forma, a pulsão das cores e a sensualidade da experiência do olhar. Este movimento pode ser percebido na instalação à entrada da mostra, uma natureza morta, onde a artista propõe uma imersão na pintura, a experiência de um labirinto de imagens diáfanas, justapostas e flutuantes, que envolvem a travessia do espectador por um espaço de luzes, cores, imagens, camadas de transparências, como que penetrando em um quadro.

Tanto as pinturas como os bordados são o resultado de um processo laborioso, experimental e longo de trabalho. A partir da coleta arbitrária em um amplo leque de referências visuais armazenadas no computador, Palma opera, como uma inteligência artificial, manipulando milhares de fragmentos. Da combinatória photoshop + o algoritmo poético da artista, ela escolhe, depois de inúmeras fusões, uma composição digital, uma imagem/modelo, a ser pintada.

Sobre a tela preparada com uma pintura de fundo complexa e trabalhosa, uma marmorização, tintas e pinceis constroem formas e figurações quase sempre em grandes formatos, composições tramadas, com especial interesse por linhas e formas curvilíneas, estruturadas por um eixo ou ponto central. Surgem então grandes encenações de pinturas, acontecimentos formais e coloridos em um espaço decididamente ilusório, uma fantasia teatral, escavando o sentido básico de luz e espaço.

Os bordados por sua vez são planos acumulativos, meio magmáticos, serpenteados e modelados como um relevo. Se nas pinturas as superfícies são chapadas, sem espessura visível nem marcas de pincel ou da mão da artista, nos bordados, por sua vez, a superfície pode ser, ao mesmo tempo, suave e crispada, marcada por volumes, recortes, saliências, texturas, sempre cálidas e sensuais como um plano desejante de ser tocado. Fazem um calculado contraponto à sobriedade silenciosa das figurações nas pinturas. Entre tapeçarias e estandartes, eles são composições vibrantes, ricas em materiais e detalhes. São colagens mimetizando uma pintura dinâmica, com camadas de transparências, amontoados de matéria, luzes e sombras; um comentário ambíguo, meio extravagante, talvez, mas nunca uma paródia; são estridentes, vistosos, sem ser carnavalesco ou frívolo.

A pintura de Mariana Palma nasce de um espírito colecionista e acumulador, de um olhar atento a todo e qualquer detalhe do mundo ao seu redor. Produz imagens luxuriantes, formas opulentas, uma beleza voluptuosa e insinuante, determinadamente femininas. Representam, neste momento em que a pintura é mais percebida como manifestação cultural que artística, um engajamento, de um lado, no prazer do processo, no compromisso com a pintura enquanto experiência, linguagem, conhecimento, memória; a pintura como verbo para exprimir desejo, ação, processo, ocorrência. De outro, procura instalar a pintura como um dispositivo de resistência, marcando para ela um lugar disruptivo na visualidade contemporânea, no sentido de interromper, suspender, a normalidade da narrativa banal e sem fim do scroll nas redes sociais. Quer resgatar no observador a experiência da contemplação, o silêncio. Propõe olhar os trabalhos, fechar os olhos, imaginar. E justamente para isso, eles não têm títulos.