MENU
2023
A trindade vista por Tunga
Por
Antonio Gonçalves Filho

Três exposições simultâneas sintetizam o universo de um dos vetores da arte contemporânea brasileira, Tunga, oferecendo uma panorâmica de sua obra. A conjunção das mostras evidencia o extenso repertório de um artista internacionalmente reconhecido justamente pela ousadia das peças agora expostas: Êxtases, em exibição na Millan, é uma obra “sinfônica”, conforme a classificação do artista, por reunir diversos trabalhos num só; Eu, Você a Lua, que o Museu de Arte Moderna (MAM/SP) abre no próximo dia 8 de agosto, e, finalmente, Tríade Trindade, que recebe os visitantes na Pina Contemporânea.

Exposta desde a abertura no novo museu da Luz, em São Paulo, Tríade Trindade (2001) une formas onipresentes na obra de Tunga, como um sino de ferro fundido, uma longa cabeleira de fios de metal que sai de um caldeirão instalado sobre o sino e um TaCaPe impregnado de ímãs fragmentados. Sustentando o caldeirão há um tripé de bengalas que evoca a estrutura de um sarilho usado para apoiar rifles.

Êxtasesfoto: Ana Pigosso

Como sempre, há referências nessa peça a trabalhos mais antigos de Tunga, entre eles Barrocos de Lírios (1994), transfigurado em cobertores de fibra reciclada trançados, assim como a Cooking Crystals (2008–2010), na forma de garrafas, cálices e funis sendo “aquecidos” no caldeirão gigante. A peça foi originalmente montada no Jeu de Paume, Paris, em 2001, e remontada em outros lugares (Nova York, Frankfurt) até ser incorporada ao acervo da Pinacoteca do Estado, em 2018.

O papel dos campos magnéticos em Tríade Trindade é o mesmo de outras obras de Tunga que recorrem a materiais similares: buscar um novo tipo de relacionamento entre os seres, uma espécie de mimetismo especular em que se pode, ao menos momentaneamente, ser o outro, experimentar a alteridade.

É o caso, por exemplo, das gêmeas unidas de maneira siamesa pelos cabelos (Xifópagas Capilares entre Nós, 1984), uma fábula criada por Tunga e remotamente inspirada no histórico familiar (sua mãe é uma das irmãs gêmeas retratadas na conhecida tela do pintor Guignard, As Gêmeas, de 1940).

Essa identificação entre os seres perseguiu Tunga desde a leitura do romance de Goethe, Afinidades Eletivas, em que tudo vem aos pares, dos protagonistas masculinos aos femininos, como num processo alquímico, similaridade observada pelo próprio Goethe por meio de um dos personagens de seu clássico.

Tunga produziu uma obra com o mesmo título do romance que viria a ser fundamental para o entendimento de outros trabalhos de cunho autobiográfico que versam sobre o “contágio mútuo” a que alude o artista para definir os inúmeros “descendentes” da referida obra.

Êxtases – foto: Ana Pigosso

Em certo sentido, Eu, Você e a Lua (2015), é um caso exemplar de descendência de Tríade Trindade e Afinidades Eletivas (2001–2004). O conjunto que agora ocupa o mesmo espaço onde antes estava a Aranha (1996) de Louise Bourgeois, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), seduz o espectador com espelhos parabólicos, essência de âmbar e cristais de quartzo que antes seduziram os visitantes do castelo de Chaumont-sur-Loire, na França, em 2015.

Da ponta de um dedo fálico e pantagruélico goteja essa essência de âmbar que pinga sobre um prato. Imagens de garrafas são refletidas nos espelhos da obra, enquanto réplicas de dedos, em bronze, apontam simultaneamente para o céu e a terra, numa representação alegórica muito próxima à mão da divindade que emerge do mar em Paisagem na Neblina, do grego Theo Angelopoulos. No filme, seu dedo desorienta os comuns mortais nessa telemaquia que trata, de forma metafórica, da busca do Pai. Não é diferente na obra de Tunga.

Finalmente, em Êxtases (1987), em exposição na Millan, uma escultura de latão, chumbo e ímãs que fixam mechas de cabelos, o mistério não vem do espelhamento de pares, mas da relação entre três elementos, igualmente como sucede nas três colunas de ferro dos tripés da peça Tríade Trindade, uma visão muito pessoal do dogma da trindade por Tunga.

Essa questão suscitada pela alegoria agostiniana do menino que quer colocar toda a água do oceano num dedal não está ligada à teologia, mas chega até Tunga por meio de Wittgenstein, ou seja, pela possibilidade do enunciado das verdades teológicas dentro de uma linguagem constituída.

Como organizar a Trindade em Unidade numa situação física precisa é um problema que Tunga resolve ao criar a ilusão de que três podem ser um. Ele já realizara a proeza com três círios numa instalação que, ao queimar, formava a Unidade (Sero Te Amavi, 1992, também baseado na tarefa do menino interpelando Santo Agostinho sobre a Santíssima Trindade).

Em Êxtases, um pente desempenha o papel organizador num ambiente caótico representado por fios de cabelo de cobre, tranças de chumbo e um “tacape” com ímãs. Ao passar pelo pente, os fios metálicos dos cabelos são separados e conquistam a individuação. A superfície do pente funciona como espelho, que reflete o que eles foram na passagem de um lado para o outro. 

A volta à questão especular remete o espectador, na sala onde está instalada a peça na Millan, para aquarelas da série Quase Auroras (2005), que tratam da transmutação dos corpos, como na alquimia. Palmeiras viram corpos femininos e o que era uma linha reta (e ereta), simulando um corpo masculino, ganha nova configuração. Em três lugares diferentes, a Pina Contemporânea, o Museu de Arte Moderna e a Millan, Tunga propõe novas leituras para a enigmática questão que nos atordoa: como três podem virar um. Um grande desafio.