I
Convivo com a obra de Amílcar de Castro há mais de trinta anos. Além disso, fui seu amigo e pude escrever sobre seu trabalho uma dezena de vezes. Essa proximidade não autorizaria uma abordagem desleixada de uma produção que nunca abriu mão do rigor e da coerência. No entanto, a seriedade de Amilcar nunca se confundiu com rigidez. Ao contrário, a clareza de suas formalizações sempre partilhou com seu material — o ferro, no qual o escultor encontrou possibilidades jamais imaginadas — algo de sua resistência e opacidade. E assim acredito que um tom menos protocolar na análise de sua obra pode se justificar a partir das próprias decisões estéticas do artista, sempre avesso às soluções formais que não levassem em conta os resultados imprevisíveis com que a realidade responderia aos seus gestos precisos.¹
No entanto, ao comentar o trabalho de Amílcar de Castro não consigo fugir — ao menos de saída — de algumas análises que fiz anteriormente, sobretudo das que foram publicadas num livro chamado A forma difícil, de 1996. E isso porque ainda acredito que elas têm alguma poder de esclarecimento. Consideremos alguns dos nossos melhores artistas modernos, como Volpi e Guignard, com obras de grande qualidade, por mais que haja irregularidades em seus trabalhos. Penso que a pintura de ambos se caracteriza em boa medida por uma timidez formal, que se mostra de diferentes maneiras em seus trabalhos. O que entendo por timidez formal? No caso de Guignard, acho que esse aspecto tem mesmo uma dimensão exemplar. Os melhores trabalhos dele – as paisagens imaginárias, as noites de São João, as vistas enevoadas de Ouro Preto – encontram uma solução muito original para um problema que ocupou quase toda a arte moderna: a tentativa de pôr em xeque a relação estanque entre figura e fundo, entre objeto e espaço. Mas essa originalidade me parece também altamente problemática. Nas paisagens de Guignard predomina um espaço meio difuso, enevoado, que se volta sobre si mesmo e, assim, se instila nas coisas que ele envolve — sejam elas montanhas ou cidades —, dissolvendo sua solidez e convertendo tudo em uma mesma substância brumosa. Desse modo Guignard alcançaria uma superfície mais ou menos homogênea que romperia com aquela relação estanque, permitindo uma maior interação entre os elementos do quadro.
No entanto, para obter essa aproximação Guignard precisa romper quase completamente com a definição dos objetos. E por aí se entende sua necessidade de pintar com a tinta muito diluída, que ajudaria a produzir aquelas imagens liquefeitas e carentes de estruturação mais marcada. Essas soluções fazem com que a natureza que se depreende de seus quadros tenha uma configuração esquiva, que reluta em se exteriorizar. Tudo na pintura de Guignard, portanto, conspira para que, por um lado, se produza a ideia de uma natureza que não se manifesta, que fica titubeando entre se mostrar e ocultar aquilo que se insinua “ao fundo”, sem se revelar plenamente. Seria possível encontrar algum ponto de contato entre as pinturas de Guignard e as telas mais radicais de Turner, no que ambas têm de difuso, de indefinição. Só que, na pintura de Turner, essa dissolução se obtém por meio de forças naturais muito poderosas — uma reminiscência da potência dos quatro elementos primordiais —, que transmitem sua energia à superfície dos quadros: o oposto do que vemos na pintura do brasileiro. Por outro lado, há também em Guignard uma coisa muito curiosa, que é o fato de que em sua pintura, diferentemente do que ocorre em uma tela de Matisse, Picasso ou Miró — apenas para ficarmos com casos exemplares —, original não é aquilo que se mostra de maneira diferente, por advir de relações de uma ordem nova, distintas daquelas que determinam nosso cotidiano. Original na arte de Guignard, dada essa aparência porosa e indecisa dos trabalhos, é justamente aquilo que não se mostra, que se oculta ao fundo. Isso produz obras extremamente interessantes, ao mesmo tempo em que revelam um trauma de origem complicado.
Na pintura de Volpi, que se move numa direção razoavelmente diferente, há aspectos semelhantes. A primeira coisa que chama minha atenção no Volpi é o fato de ele voltar para a têmpera. A têmpera é uma técnica medieval, que é substituída pelo óleo tão logo ele se desenvolve nos Países Baixos. E deixa de existir por razões muito específicas: a têmpera seca muito rápido, é opaca — portanto não possibilita velatura — e impede que as cores se misturem sobre a tela. É curioso isso. E há ainda, no uso muito sutil que Volpi faz da têmpera, um evidente diálogo com as casas caiadas do interior do país. E, de um ponto de vista mais erudito, também com as cores leves dos afrescos. Ou seja, um vínculo estranho com algo altamente vernacular e local e, ao mesmo tempo, com uma das mais poderosas tradições da pintura européia. Não custa lembrar que na única vez em que voltou para a Europa, em 1950, Volpi visitou quase vinte vezes a Capela dos Scrovegni, em Pádua, uma das maiores realizações de Giotto, também em afresco.
Então, o que resulta dessas decisões do artista? Por um lado, dado o modo como o Volpi usa a têmpera, há uma cor que nunca se define muito bem, porque ele a usa de maneira muito aberta, sem que ela produza superfícies de cor homogêneas, o que só acontecerá nas telas que têm um diálogo mais estreito com os artistas concretos, em meados da década de 1950.
Por outro lado, e de forma quase paradoxal, nota-se uma considerável influência do construtivismo no modo de Volpi organizar suas telas. Ainda que seus trabalhos sempre remetam a elementos meio figurativos — as bandeirinhas de São João, as fachadas, telhados, mastros, bandeiras —, me parece indiscutível que o pintor tira partido da geometria simples daqueles padrões para articular de modo mais claro suas telas. Mas a “geometria” de Volpi estará sempre marcada por um titubeio que teima em remeter à origem manual daquelas figuras.
O uso original que Volpi faz da têmpera terá como consequência essa expressividade sem drama: uma explicitação da atividade da mão que, em lugar de se opor à resistência da matéria, se encanta com os modos de vencer docemente sua solidez. Na pintura de Volpi, cores e formas precisam mostrar-se com relutância. Se ele flerta aqui e ali com a formalização rigorosa e industrial dos construtivistas, é apenas para tornar mais clara a distância que o separa deles. Certa vez, Nuno Ramos mostrou a Frank Stella reproduções de quadros de Volpi. O artista americano, a quem certamente falta uma maior familiaridade com a arte de Volpi, não titubeou: achou-os primitivos, quase ingênuos. De fato, a pintura de Frank Stella é quase oposta à do artista brasileiro: o decorativismo das obras realizadas na segunda metade da década de 60 resolve-se com áreas de cor chapadas e intensas, delineadas sem qualquer relutância ou gestualidade.
Então é curioso que tanto no trabalho do Volpi quanto no de Guignard nós tenhamos uma recusa a aspectos decisivos da arte moderna: a capacidade de produzir relações de forma e de cor que se diferenciem das demais aparências do mundo, obtendo vínculos que dariam à realidade um modo de aparecimento mais livre e soberano. É nisso que vejo a timidez formal de parte considerável de nossa melhor arte, pois acredito que alguns desses aspectos também poderiam ser identificados em trabalhos de outros de nossos 5 artistas modernos mais originais: Tarsila, Anita Malfatti, Milton Dacosta, Hélio Oiticica, Lygia Clark etc.
Acho que poucas pessoas gostam desses artistas tanto quanto eu. No entanto, o limite que vejo neles está na proximidade excessiva que mantêm com aspectos importantes de nossa sociabilidade que me parecem muito complicados. Em outras palavras, o que me incomoda nesses traços da arte moderna do país é ver neles o mesmo incômodo que tantos de nós identificamos no Brasil: não conseguir imaginar um outro lugar para viver e, ao mesmo tempo, não poder aderir a um tipo vida encantador e muito problemático.
De fato, acredito que em boa medida essa relutância, essa timidez formal, essa recusa de trazer as formas à tona, de fazer com que elas tenham uma presença acentuada tem muita relação com a nossa sociabilidade. Ao menos até os anos 60 foi por essa via que a nossa convivência se pautou. Até esse período, mais da metade da população brasileira morava no campo. Para além das limitações que a vida rural tende a impor ao convívio social – no nosso caso, um mundo em que o pai mandava na família, em que a família mandava nos camponeses, estendendo sua influência às cidades e à nação –, toda a sociabilidade do país conspirava contra os processos de diferenciação que marcaram a fundo a vida dos países mais avançados: a organização autônoma das classes sociais (em partidos, sindicatos ou movimentos sociais), o estabelecimento de normas a serem seguidas por todos os cidadãos, uma noção de individualidade e cidadania que superasse as práticas do favor e do clientelismo. Ainda que a escravidão tenha sido abolida em fins do século XIX, ela sem dúvida foi decisiva para a geleia geral que, em certa medida, ainda norteia nossa convivência.
Não estou afirmando que Volpi e Guignard simplesmente reiterem aqueles aspectos ambíguos e problemáticos de nossa convivência. Penso que eles procuram encontrar, revelar neles uma dimensão afirmativa, uma espécie de lirismo da proximidade, que tornaria aquela indiferenciação o lugar possível de uma vida nova, em que os seres e a natureza se relacionassem de forma pouco mediada e feliz. Sem dúvida, um projeto particularmente avesso às distâncias e complexidades instauradas pela vida moderna e pela industrialização.
Mas, afinal, o que o trabalho de Amilcar de Castro tem a ver com esse travo social brasileiro, com essa incapacidade de os grupos sociais se diferenciarem, de as classes se estruturarem, de as pessoas se articularem institucionalmente, formalmente etc.? A meu ver, tudo. Só que com uma diferença fundamental: nas suas esculturas – sobretudo nos formidáveis trabalhos de corte e dobra – aquilo que na pintura de Guignard e Volpi se mostrava, conforme vejo, uma tentativa de redenção lírica de nossa falta de distância e de institucionalidade, nas suas esculturas, repito, alcançava uma intensidade poucas vezes vista na arte brasileira.
O que, em linhas gerais, caracteriza os primeiros trabalhos autônomos do Amilcar, os trabalhos de corte e dobra mencionados atrás, dos quais há nesta exposição alguns exemplos muito bonitos? Há neles um rigor formal muito grande, cuja origem construtiva não tem mistério nenhum – você bate o olho e sabe que o artista partiu de uma chapa plana, cortou-a e dobrou-a, chegando assim à tridimensionalidade. Mas se nós reduzíssemos essas esculturas de Amilcar a isso, de fato perderíamos de vista quase toda a singularidade e a grandeza de seu trabalho. Porque o que é mais constitutivo no trabalho dele, aquilo que estrutura de fato essas obras, é justamente a dobra, ou seja, a resistência do aço² à formalização – o que sem dúvida põe em xeque a transparência do processo que levou a elas. Basta pensar nas mudanças que o uso de solda, em lugar das dobras, introduziria nas obras para termos clareza da sua importância na estruturação das esculturas.
Para deixar claro o que quero ressaltar, vou tomar como referência a concepção de um artista que foi muito influente para Amilcar e para boa parte dos nossos artistas, o Max Bill, uma das grandes figuras do construtivismo tardio. A força que ele teve no nosso meio de arte, acredito eu, não pode ser atribuída apenas ao atraso da discussão artística nacional, ou às demandas que o desenvolvimentismo de JK colocou para a discussão estética no Brasil. Além de poder realmente ser visto pelos artistas – Max Bill ganhou com a Unidade tripartida o primeiro prêmio na I Bienal Internacional de São Paulo – e de ter polemizado de forma clara e, digamos, racional com artistas e arquitetos de nosso meio pouco afeitos a oposições, penso que o artista suíço tocou em outro ponto decisivo (e vulnerável) de nosso frágil meio de arte.
Antes da presença de seus argumentos e, sobretudo, da confirmação deles em obras de arte, apenas uns poucos artistas – Waldemar Cordeiro, por exemplo, formado na Europa – se empenhavam para afastar a arte brasileira do âmbito de um diletantismo romântico e, por consequência, avesso a discussões. Sem dúvida, com todos os problemas que uma plataforma vanguardista tinha de esquemático e sectário. Com a presença de Max Bill – pessoalmente e com suas obras – no meio cultural do país, as artes visuais se tornaram uma região suscetível de ser criticada na forma de argumentos, que, por sua própria natureza, contrariavam o pretenso caráter inefável das obras construídas sem o apoio daquele instrumento universal e compartilhável por todos, a palavra.
Mas a missão civilizadora de Max Bill – algo ainda hoje carente de uma pesquisa mais detida e esclarecedora – também conduziu à crença na transparência do sentido e da significação da arte que certamente estava aquém dos dilemas do nosso tempo, mesmo aqueles de um país atrasado. No fundo, para Max Bill e para o construtivismo tardio, inclusive para uma parcela considerável da produção de Lygia Clark e de tantos outros concretos e neoconcretos, o ideal era a fita de Moebius, aquela faixa que desenha o símbolo do infinito, em que dentro vira fora, em que a superfície se transforma em volume etc. E dado o fato de que na fita de Moebius não existe resistência à forma, a reversibilidade das figuras obtidas é absolutamente exequível – entendo por isso a quase redução do sentido de uma obra de arte à possibilidade de o espectador refazer os passos realizados pelo artista para chegar àquela obra posta diante de nós --, coisa que não existe no trabalho do Amilcar.
No caso dele, nós podemos saber que o trabalho foi feito de certo modo, mas a presença ostensiva das dobras faz com que, se nós a desconsiderarmos, desconsideremos uma dimensão fundamental no trabalho de Amilcar. Então é justamente essa tensão entre um rigor formal muito grande e a incorporação ao trabalho de uma resistência das coisas à forma que faz com que não só o trabalho tenha uma grandeza, uma intensidade muito interessante, mas que, sobretudo, se diferencie de toda a tradição construtiva. Penso que seja isso que ajuda a entender a menor eficácia das esculturas circulares de Amilcar de Castro: além da precisão dos cortes, o círculo torna a configuração das obras excessivamente acentuada, dificultando a presença do aço e de sua resistência.
Qual o material por excelência dos construtivos mais tardios? Basicamente o acrílico, ou então o aço inoxidável e o bronze. No caso do acrílico, a opção se justifica pelo fato de ele ser transparente, e assim o observador pode acompanhar totalmente o raciocínio do artista. Além disso, trata-se de um material dúctil, que não oferece nenhuma resistência à moldagem, tornando ainda mais triunfante o movimento das ideias.
Há em muitas dessas obras quase um delírio de honestidade, quando, em nome de se romper com qualquer obscuridade do sujeito, com inspirações, intuições ou qualquer misticismo do gênero, o significado do trabalho de arte se reduz a um procedimento controlável pelo observador, ao qual resta refazer os passos empregados pelo artista. No caso de Amilcar isso não é possível, por causa daquela magnífica dobra. Toda transparência do processo de se passar da superfície à tridimensionalidade – uma dimensão ligada a uma busca pelo essencial, de origem heideggeriana, que foi cara a Amilcar num certo momento de sua formação – se via problematizado pela espessura da matéria do mundo, da resistência do ferro às imposições da técnica.
Essa decisão de dobrar o ferro, em lugar de soldá-lo, criou alguns problemas práticos para o artista, porque, inclusive por falta de dinheiro, ele não pôde, até a segunda metade dos anos 90, dobrar mais de duas polegadas. E mesmo no final da vida, com uma situação econômica um pouco mais folgada, acredito que não passou de 3 polegadas, em obras desse tipo. Como vocês devem saber, cortar o aço é a coisa mais simples desse mundo: você usa um maçarico e corta aço como corta manteiga. Dobrar é outro mundo. Já o Chillida, um escultor espanhol interessante que morreu há pouco tempo, e que não é superior ao Amilcar do ponto de vista estético, dobrava um barrote de mais de 20 centímetros de largura. E por uma razão simples: porque tinha dinheiro e apoio institucional para realizar os trabalhos que planejou. O maior problema que vejo nessa limitação material de Amilcar foi a dificuldade de lidar com o aumento de escala das esculturas. Nas vezes que arriscou fazer obras de dimensões maiores – como a escultura da Praça da Sé, em São Paulo --, a impossibilidade de aumentar a espessura das peças diminuía sua intensidade, já que, ao aumentar, faziam perceptivamente a placa de ferro perder em presença e em resistência.
O que estou querendo enfatizar, ao falar da tensão entre rigor formal e resistência da matéria à formalização? Que essa espécie de travo nacional – essa dificuldade de as coisas se diferenciarem, de o filho se livrar do pai, de a fazenda se livrar da família, enfim, essa indiferenciação em que tudo acaba apontando para uma impotência estrutural ou para o salvador da pátria, essa nossa tradição populista –, na obra de Amilcar se transforma em intensidade, e não em timidez formal. Eu penso, portanto, que Amilcar – e ele achava o Volpi o maior artista brasileiro, estou repetindo o que ele me disse, justamente porque não quero simplificar de maneira postiça as posições do nosso meio de arte – partilha essas mesmas questões. No entanto, a meu ver ele dá às nossas dificuldades uma intensidade estética que poucos artistas conseguiram alcançar.
Por outro lado, há em certas escolhas de Amilcar – vamos ainda considerar os trabalhos de corte e dobra – uma espécie de intuição muito poderosa que é o fato de ele usar o aço cor-tem. Ferro e aço são coisas semelhantes, com uma diferença de porcentagem de carbono que entra na composição de um e outro. O aço corten, que Amilcar começa a usar praticamente de forma contínua depois do final dos anos 60, é um aço que tem uma porcentagem de cobre. Ele tem a propriedade de, depois de sofrer certa oxidação, a própria oxidação não possibilitar mais que o processo de corrosão prossiga. E, para quem teve proximidade com Amilcar, era muito interessante ver como ele trabalhava com o aço corten. Havia uma metalúrgica com a qual ele realizava vários desses trabalhos, que ficava fora de Belo Horizonte. Lá as peças ficavam na beira de um barranco, que se abria para uma vegetação singular, com palmeiras e árvores do cerrado. E lá, quando acompanhava a feitura das peças de aço cor-ten, ele dizia “aquela enferrujou bem, aquela não”. Essas avaliações dele, mais o agreste da paisagem davam um estatuto muito peculiar aos trabalhos, porque ali se combinava o aspecto industrial de uma pequena metalúrgica e a natureza, que reivindicava seus direitos pela ferrugem, e que era reforçada, por acaso e de maneira notável, pela paisagem árida e irregular.
Mas, para além dessa dimensão natural e imprevisivelmente pictórica, a ferrugem – que, reparem, é uma decisão estética do artista, ele poderia trabalhar com aço inoxidável, ou, como fez de forma notável o Franz Weissmann, pintar as superfícies dos metais – é uma espécie de acréscimo à resistência do mundo, às pretensões construtivas de ordenar o mundo por meio de boas formas e por relações racionais. Por quê? Porque a ferrugem é a explicitação de que o tempo age sobre o mundo. Amilcar, além de ser um homem inteligente, era um grande frasista. Uma vez, conversando com ele sobre isso, eu perguntei: por que você não usa alumínio? “Porque alumínio não tem caráter, sô.” E por que alumínio não tem caráter? Primeiro porque ele verga facilmente, e quem verga facilmente não tem caráter. Segundo, porque não envelhece, ou seja, ele não oxida. E quem não envelhece igualmente não tem caráter. Depois de ele observar isso, parece óbvio, não é?
E Amilcar até criou a respeito de seu trabalho uma mitologia do ferro em Minas Gerais³, mas a questão vai além disso. Porque, de par com a espessura do mundo, a resistência do mundo à organização, que é o que nós, brasileiros, experimentamos a todo momento – não adianta fazer uma construção ou uma constituição perfeita, o Brasil vai continuar resistindo a essa construção perfeita, por razões óbvias –, há essa espécie de sedimentação da ação do tempo sobre o material do Amilcar que é admirável, e que também o diferencia de todos os outros construtivos. Além da resistência do mundo à boa forma, há o passado, a história, que tolhe os movimentos, e ao mesmo tempo precisa ser considerada para que as ações transformadoras tenham eficácia. Max Bill usava aço inoxidável com frequência. E isso diz muito a respeito das diferenças de concepção entre ambos, ainda que, possivelmente, a trajetória de Amilcar de Castro tivesse sido outra sem a influência de Max Bill.
II
Um outro aspecto que eu acho muito interessante no trabalho de Amilcar, e aí já estou deixando as idéias de meu livro de lado, é o seguinte. Reparem que tanto nos trabalhos de corte e dobra quanto nos trabalhos de corte e deslocamento, bem como nesses últimos trabalhos – que foram expostos primeiramente na Praça Tiradentes e no Centro de Arte Hélio Oiticica em 1999, e dos quais há alguns exemplares lindos nesta exposição, em que as chapas são mais finas, mas ainda dobradas –, e até mesmo nos desenhos, por mais diferentes que sejam entre si, há neles uma espécie de termo comum, que é o fato de suporem uma unidade forte de que partem. O que temos nas obras de corte e dobra? O artista parte de um retângulo (ou de um círculo), corta, dobra e chega à tridimensionalidade. Nos trabalhos de corte e deslocamento – em que as chapas podiam ser mais espessas porque, como disse antes, cortar ferro com maçarico é a coisa mais simples do mundo –, sua ação se resumia a cortar e deslocar algumas partes. Nos últimos trabalhos, embora Amilcar não trabalhe com formas tão regulares como nas esculturas anteriores, ele também parte de uma forma íntegra, dobra e produz diferenças. E nos desenhos, que ele fazia ou com uma brocha, uma trincha enorme, ou com vassoura, quase sempre o trabalho resulta de um gesto contínuo. Ele molhava a trincha ou a vassoura no nanquim ou na tinta, e fazia um único movimento até o fim.
Reparem que nos quatro procedimentos nós temos sempre uma unidade dada que é rompida e refeita, ou então o gesto contínuo dos desenhos. Com a diferença de que, neles, desenhos, a continuidade do movimento do pincel ou da vassoura também adquirirá diferenças: de velocidade, de entintamento, entre as linhas retas e as linhas angulosas, e assim por diante.
Por que isso me parece interessante? O que Amilcar revela nesse esforço para romper unidades dadas -- e que é notável tanto do ponto de vista estético quanto do da compreensão do mundo suposta nessas ações -- é justamente a recusa a aceitar as relações estabelecidas, pelo costume ou pela autoridade, como contingências que precisariam ser tomadas como necessidades. Enfim, como algo de que não se poderia prescindir ou se livrar. No caso dos trabalhos de corte e dobra, acredito que deixei claro como as dobras criam regiões heterogêneas nas superfícies de aço, o que também repercutirá nos espaços criados por elas.
Nos trabalhos de corte e deslocamento, em que muitas vezes ele lida com chapas muito mais espessas, Amilcar introduz uma questão alheia à tradição construtiva, a preexistência de um volume. Até o Rodin, a escultura moderna trabalha com o que se chama de monólito, ou seja, um volume íntegro e impenetrável, compacto, que se colocava no espaço como algo oposto a ele, e do qual precisaria se diferenciar, ainda que, me parece claro, interviesse muitas vezes de maneira fabulosa na sua percepção. O que muda com a guitarra feita de lata por Picasso em 1912, e que o torna não apenas um dos maiores pintores, mas também um dos maiores escultores do século XX, sem dúvida o artista que mais abriu caminhos para a escultura do século XX? Com ela, o volume passa a ser constituído pela justaposição de planos, aberto a uma articulação mais livre com o espaço. E quase todas as grandes produções escultóricas modernas, à exceção de Brancusi, de Giacometti – que no fundo quase não tem mais volume --, e outros poucos, como Arp e Henry Moore, saem dessa trilha aberta por Picasso. Os Bichos de Lygia Clark, os Relevos espaciais e os Núcleos de Hélio Oiticica, as esculturas de Amilcar e de Franz Weissmann, apenas para ficarmos com os brasileiros, têm uma dívida com aquela guitarra. Com ela se cria uma concepção de volume que não mais supõe uma inteireza dada. Cria-se um espaço vazado construído pela justaposição de planos que se comunica livremente com o espaço e que tira desse intercâmbio muito de sua força.
O que é curioso, como mencionei antes, é que nas peças de corte e deslocamento de espessura mais acentuada volta uma espécie de volume preguiçoso. Preguiçoso por quê? Porque ele não se pergunta sobre a sua origem. E o que é admirável é que quando ele corta e desloca as partes do monólito de ferro, ele por um lado homenageia o Morandi, porque cria esses tonalismos admiráveis pela ação da luz nas diversas partes dos trabalhos – e Amilcar de fato era um homem muito singular, porque, a despeito de sua formação construtivista, tinha abertura para reconhecer a grandeza de um artista totalmente diverso daquela vertente. Por outro, ao romper com aquela unidade dada, preguiçosa, não reflexiva, obtida pelo deslocamento das partes, faz com que a dimensão reflexiva se reinstale no monólito e esvazie a preexistência de um volume tridimensional dado. Porque aquilo passa a ser um conjunto de blocos, quase um Lego, que não só retira a solidez opaca do volume dado, como introduz nessa noção de volume tradicional uma leveza, um jogo, uma gama de possibilidades que julgávamos impossível de ser conquistada. Não me parece difícil, também nesse caso, perceber uma crítica muito sagaz à maneira tradicionalista de se pensar a realidade, sempre avessa, nesses pensamentos, a qualquer mudança mais radical.
No entanto, o caráter libertário desse reagenciamento das realidades tem também uma outra dimensão muito reveladora. As diferentes configurações permitidas pelas diversas partes das esculturas fazem com que percebamos com clareza a natureza relacional da determinação dos objetos e das configurações sociais. Por não terem mais um valor em si, os elementos das esculturas evidenciam a dependência que mantêm com as outras partes, num jogo que abre o mundo para direções muito mais emancipatórias e verdadeiras.
III
Nos últimos trabalhos – e, eu queria insistir nisto, Amilcar morreu com 82 anos, e, como poucos artistas brasileiros, estava no auge de sua força artística, talvez justamente porque a trajetória de seus trabalhos o liberava, ampliava seu campo de escolhas, em vez de tolhê-lo –, ele consegue dar ao ferro uma nova configuração. E também nesse aspecto acredito que resida uma parte da grandeza do artista: trabalhar por mais de cinquenta anos com um mesmo material – embora tenha alcançado resultados notáveis com madeira e, em menor grau, com pedra –, sem convertê-lo em algo cristalizado, estéril, idêntico a si mesmo. Ao contrário, ele conseguiu dar ao ferro uma diversidade que apenas a relação não violenta com um material, a notável permeabilidade a ele, permitiria.
Nos últimos trabalhos, aqueles que têm superfícies que se inclinam para direções opostas – dando às esculturas uma instabilidade nova –, não custa sublinhar que seu princípio ordenador mudou novamente. E isso por volta dos 80 anos de idade, repito. Ele não parte nem do círculo nem do retângulo. Parte de formas irregulares a que chega por uma complexa intersecção de círculos e retângulos e depois, destacando algumas concatenações, chega às formas finais das esculturas, também obtidas por meio de dobras.
Se vocês voltarem à exposição e observarem esses trabalhos, vão ver que aquele desequilíbrio entre as abas das esculturas se acentua por uma manobra muito inteligente do artista: seccionar as superfícies de forma a se estreitarem ou se alargarem à medida que se aproximam do chão, como se vistas em perspectiva. Desse modo, produz-se uma espécie de maior velocidade na materialização dos planos, como se as extremidades inferiores e superiores deles se distanciassem ainda mais, embora paradoxalmente nada tenha mudado. Essa ambigüidade nova, entre distância e largura, acaba não só tornando as peças ainda mais instáveis como também intervém no espaço de maneira decisiva, ampliando muito essa questão (o espaço) nos trabalhos de Amilcar de Castro.
Considerem, por exemplo, a distância que medeia entre mim e vocês. Acredito que concordarão que ela constitui um espaço anódino, cuja realidade se revela mais pelos corpos que o delimitam do que por sua própria presença. Diante desses trabalhos de Amilcar, experimentamos um espaço muito diverso. Aqueles desequilíbrios tornam as superfícies bem mais que simples balizas. Sua instabilidade faz delas uma delimitação precária e provisória de uma espacialidade tensa, pronta a adquirir nova configuração. Basta nos movermos diante das esculturas para que ela (espacialidade) ganhe novas realidades, bem como para que nosso posicionamento espacial se transforme. Além disso, a habilíssima compreensão, pelo artista, da educação de nossa percepção por meio da tradição da perspectiva – algo que vai muito além daquilo que surge com a pintura do Renascimento --, intensificará aquele jogo. Pois o seccionamento irregular das abas fará com que vejamos as lâminas de aço se estendendo simultaneamente tanto na vertical quanto na horizontal (sua presença “real” e sua “perspectivação”). E assim novamente o espaço se acentuará, nossa posição nele se deslocará, em detrimento dos elementos que simplesmente o delimitariam.
Curiosamente, Amilcar de Castro chegará, por uma trajetória absolutamente moderna, a questões semelhantes àquelas que ocuparão profundamente a arte contemporânea, sobretudo as vertentes mais próximas dos minimalistas: a relação entre o objeto de arte e o observador, com ênfase justamente no vínculo corporal que se estabeleceria entre ambos. Robert Morris, num texto bem conhecido, mostra como para eles, minimalistas, o objeto de arte não era menos importante, era apenas menos auto-importante. Dada a simplicidade de suas “formas” – obtidas por mera justaposição, “uma coisa depois da outra” nas palavras de Donald Judd, o que evitaria o estabelecimento de relações internas complexas, que monopolizariam a percepção do observador –, o trabalho de arte conduziria a uma relação prática entre os objetos e o público. Para Morris, "os melhores trabalhos recentes conduzem as relações para fora do trabalho e tornam-nas função do espaço, luz e do campo de visão do observador"⁴. É a partir desses pressupostos que surgem todas as tentativas de renovar a relação com o trabalho de arte: instalações, ambientes, arte pública, land art etc.
Sem dúvida, o caminho percorrido por Amilcar – ou seja, seu vínculo crítico com o construtivismo, com uma importante vertente da tradição moderna – irá conduzi-lo para uma direção diversa. Suas últimas esculturas sem dúvida nos ajudam a entender a relação prática que nossos corpos mantêm com a realidade e como essa relação influenciará tanto na percepção do mundo quanto em nossa própria maneira de nos situarmos nele. Elas não se situam com ingenuidade no mundo. Põem constantemente em questão sua materialidade e ativam as regiões em que se instalam. No entanto, por terem “relações internas”, por serem feitas (e não apenas dispostas), elas revelam uma maior “auto-importância”, para usarmos os termos de Robert Morris.
Da maneira como as vejo, as últimas esculturas de Amilcar de Castro se esforçam para dar ao espaço uma concretude poucas vezes alcançada antes, justamente por ser obtida num momento de máxima tensão: quando as superfícies de ferro se mostram simultaneamente como a materialização de um limite e como ação que engendra um lugar. E nada disso seria possível sem a formidável capacidade do artista para superar a rudeza material de simples balizas por meio de uma instabilidade que as põe em xeque permanentemente.
Por mais que o uso do aço corten tenda a nos fazer aproximar as obras de Amilcar da escultura de Richard Serra – cujo trabalho também não existiria sem todas as contribuições dos minimalistas –, penso que, ao menos em relação às últimas obras, seu parente contemporâneo mais próximo seria Fred Sandback. Até por limitações materiais, Amilcar não pôde conseguir a escala que é decisiva para os trabalhos de Serra, aquela experiência da gravidade do mundo que não se alcançaria sem o peso, a altura e o desequilíbrio de suas peças. Mas confesso que tenho dúvidas sobre a capacidade de os trabalhos de Amilcar crescerem muito, embora sem dúvida ele teria alcançado outros patamares estéticos se as suas condições materiais fossem mais favoráveis. A quase imaterialidade das esculturas de Fred Sandback – simples linhas de barbante que criavam “buracos” no espaço homogêneo e anódino dos locais de exposição – me lembra a tensão a que se veem conduzidas as chapas de aço nas últimas esculturas do artista mineiro. E, de maneira extraordinária, Sandback confere àqueles limites tênues uma intensidade que recorda a força das superfícies de Amilcar. Diante das aberturas espaciais do norteamericano tem-se a impressão de que toda uma realidade labiríntica se abre para o observador. E por isso atravessar aqueles contornos apresenta um desafio ameaçador: a capacidade de tornar o espaço heterogêneo e múltiplo faz do vazio o lugar de uma experiência irreversível, capaz de nos conduzir a regiões sem caminho de volta.
Gostaria de voltar, rapidamente, a uma questão que levantei atrás, mas que não pude desenvolver adequadamente. Refiro-me à notável capacidade que Amilcar de Castro teve de dar, ao ferro, formas de aparecimento tão diversas. A relação amorosa com seu material tornou possível interrogá-lo de maneiras sempre novas, e assim obter dele significações de que não suspeitávamos. Nos primeiros trabalhos em que usou o erro, nos anos 50 e ainda com o emprego de solda, ele era simples superfície, articulada de modo pouco inovador. Já nas esculturas de corte e dobra, o ferro se mostra como resistência. Nas de corte e deslocamento, ele torna-se predominantemente massa e volume. Nessas últimas, ele aparece como espaço. Isso é encantador.
Hoje em dia algumas vertentes artísticas criticam a arte moderna de forma áspera: formalista, machista, elitista, despolitizada. A resposta que dão às limitações que veem nos modernos tende a voltar a uma arte narrativa, em que os mais diferentes elementos da realidade – de esperma a cadeiras, de sangue a tintas – são usados para fazer o mundo falar, como se fosse um boneco de ventríloquo. Seria tolice identificar toda a arte contemporânea com essas tendências. No entanto, não apontar o peso que elas têm no cenário artístico atual suporia uma ingenuidade desmesurada.
O que encanta nos grandes artistas modernos, entre tantas outras coisas, é justamente a capacidade de criar realidades que nascem da pergunta sobre a melhor maneira de fazer-lhes verdade. Matisse, ao recortar uma folha de papel amarela, verde ou azul, procurava encontrar os limites que dariam a essas cores a sua definição mais exata, sozinhas ou em relação a outras cores. Brancusi realizou formas semelhantes em materiais diferentes. E basta comparar um Peixe em mármore branco com outro em mármore mais escuro, com veios brancos, para nos certificarmos que neles o próprio material entra como parte decisiva na aparência final das obras, e não como simples suporte de linhas e contornos, por isso são tão diferentes. E uma Guitarra de Picasso feita em madeira quase não tinha termos de comparação com uma feita em lata, pois madeira e lata não se deixavam cortar do mesmo jeito, e o artista tratava de incorporar à própria escultura a diferente resistência de ambos materiais ao corte.
Amilcar de Castro também soube lidar com o ferro visando a realçar suas múltiplas facetas, sem reduzi-lo a uma reles matéria-prima a ser domesticada docilmente. Hoje, quando o aquecimento global parece apontar como nunca os limites de um modo violento e unívoco de agir sobre a natureza, a dimensão crítica dos procedimentos artísticos modernos sobressai com força. A não ser que se queira voltar, nas artes visuais, a uma noção de significação tradicional e acessória, na qual a vontade de “dizer” algo se sobrepõe e se antecipa à interrogação sobre os modos de mostrar o mundo de maneira mais livre e soberana.
Além disso, acredito que essa atenção à realidade com que trabalhava possibilitou a Amilcar uma experiência do mundo que, em princípio, pouco teria a ver com o construtivismo, mais próximo das universalidades da razão que das particularidades das práticas sociais. De fato, a incorporação das contingências do ferro à sua escultura deve ter contribuído para uma compreensão muito aguda das formas de organização da convivência social no Brasil, ainda que por oposição. Explico-me: ao se recusar a ordená-lo por meio de procedimentos técnicos que suspendessem sua resistência – a fundição, a solda, a pintura das superfícies, a fresagem –, Amilcar, talvez involuntariamente (o que só melhora as coisas), precisou equacionar um tipo de relacionamento que, ao mesmo tempo, pressupunha uma vontade de ordenação e uma realidade social pastosa, avessa às concatenações claras justamente porque não produzira diferenciações fortes. E assim sua escultura dava conta de algumas dimensões decisivas de nossa história, sem ceder a elas. Se o construtivismo foi decisivo para a formação de Amilcar – sem ele a adesão à nossa geleia geral se tornaria mais tentadora –, ele também apresentava limites que o artista se viu forçado a problematizar.
Para concluir, gostaria de dizer algo sobre a figura pública de Amilcar, de falar um pouco sobre seu papel não apenas como artista, mas também como formador, como pessoa que influiu decisivamente na trajetória de muita gente, não apenas artistas: críticos de arte, artistas gráficos, galeristas, diretores de instituições de arte. Há um equívoco generoso (sem deixar de ser equívoco) na aproximação que muitas vezes se faz entre um grande artista e um grande homem. Muitas vezes encontramos na história da arte o oposto disso. Por essa razão, falei em “figura pública”. Sempre achei Amilcar de Castro um sujeito formidável – apenas isso não vem ao caso aqui.
Nos nossos dias, quando já existe no país um mercado de arte razoável, talvez percamos de vista as dificuldades por que a geração de Amilcar passou. Apenas no final da vida ele pôde viver exclusivamente de sua arte. Antes, teve que dar tratos à bola para sustentar a família: foi funcionário público, artista gráfico (notável, por sinal), bolsista nos Estados Unidos, professor universitário... e artista. Num ambiente tão pouco favorável, acredito que seu rigor e sua lucidez adquirem uma significação difícil de avaliar. E aqui não há como diminuir a importância de sua companheira de toda a vida, Dorcília, que encarou com Amilcar todas as barras que uma vida sem concessões tende a conduzir. E isso sem saber, como sabemos nós hoje, que estava apoiando o trabalho de um grande artista... A determinação de Amilcar não levou, porém, apenas a uma produção artística da maior qualidade. Todos que tiveram a chance de conviver com ele – de artistas a galeristas, de críticos de arte a operários metalúrgicos – sem dúvida tiveram muito a aprender com sua correção.
No entanto – e já mencionei esse aspecto antes --, sua coerência não o levou ao dogmatismo, como foi frequente com pessoas formadas na estética construtivista, tão inclinada a reduzir os dilemas artísticos a uma normatividade empobrecedora. Amilcar gostava de Mondrian e Morandi, de Volpi e Richard Serra, de Mira Schendel e Sergio Camargo, de Nuno Ramos e Paulo Pasta. Penso que tenha sido essa disponibilidade para as diferenças que tornou sua atividade como professor de arte na Universidade Federal de Minas Gerais e de outras instituições tão proveitosa. Ele não procurava criar clones dele mesmo. Em geral, seu ensinamento se resumia a tentar encontrar com os alunos uma melhor compreensão do que eles já faziam. E ninguém em Belo Horizonte desconhece a importância que ele teve para a formação de muitos artistas daqui. E também artistas mais jovens de outros estados, não apenas de Minas Gerais, sempre puderam contar com sua franqueza e com seu apoio. Sem falar de artistas cuja origem social conspira para confinálos ao mundo da “arte popular”, como Artur Pereira e Lorenzato, que também tinham nele um defensor incansável. Mas todas essas dimensões de Amilcar de Castro, feitas as contas, sempre encontrarão seu ponto de apoio e sua força naquilo que melhor ele souber fazer: seus trabalhos de arte. E, a meu ver, ele só vem melhorando com a passagem do tempo.
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1. Este texto tem como base conferência realizada sobre a obra de Amílcar de Castro na Casa Fiat de Cultura, em Nova Lima, Minas Gerais, em 9 de abril de 2008, por ocasião de exposição do artista. Agradeço a José Eduardo de Lima Pereira, presidente da instituição, e a Afonso Borges pelo convite.
2. Amilcar de Castro, a bem dizer, usou sobretudo o aço em suas esculturas, embora em geral se referisse a seu material como “ferro”. No entanto, como a diferença entre ambos está apenas na porcentagem de carbono que entra em sua composição, uso aqui as duas palavras indiferenciadamente.
3. Ver, por exemplo, o seguinte texto de Amilcar: “É de chapa de ferro. De chapa, porque pretendo, partindo da superfície, mostrar o nascimento da terceira dimensão. De ferro porque é necessário. É natural de Minas, está ao alcance da mão. Todo mundo sabe trabalhar o ferro. A superfície é domada – é partida e vai sendo dobrada. É quando, e por fatalidade, o espaço se integra, criando o não previsto. É pura surpresa. (...)”
4. Ver o ensaio “Notes on sculpture”, de Robert Morris. Em Minimal art: a critical anthology. Organizado por Gregory Battcock. Nova York: E.P Dutton, 1968, pp. 221-235. O texto de Morris foi publicado originalmente em 1966.
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