Aqui está a característica mais marcante dos trabalhos de Amilcar de Castro: formas bidimensionais anônimas e fechadas em si mesmas (o retângulo, a circunferência), transformadas por uma ação. Uma ação que, rompendo a inércia da forma-matriz, projeta-a para o tridimensional, transformando-a e transformando o espaço ao redor. Pela ação do gesto sobre a matéria, essas esculturas se mantêm todas iguais, só que absolutamente diferentes entre si. Cada uma é una sendo, fundamentalmente, todas.
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Na pintura Operários, de Tarsila do Amaral, as formas ovoides que remetem o espectador ao conceito de multidão anônima são profundamente modificadas pela necessidade da artista de individualizar cada uma delas, conferindo-lhe sexo, cor, raça.
Em Alfredo Volpi, isto costumava ocorrer em algumas das produções. O artista muitas vezes usava um mesmo desenho estrutural para realizar duas ou mais pinturas. Essas repetições, no entanto, tornavam-se diferentes umas das outras a partir de certas relações de cor e luz que o artista jogava com maestria sobre a estrutura primeira.
É perfeitamente possível conectar aquela característica típica de Amilcar a outras experiências artísticas, sobretudo no campo da pintura. Já no campo da escultura, tais conexões se tornam mais difíceis.
De fato, dentro do universo da escultura dos últimos cem anos, a obra de Amilcar ocupa um lugar bastante especial, e esse lugar pode ser definido mais por aquilo que não é -ou não quer ser -- do que por aquilo que ele é.
Em primeiro lugar, é preciso frisar que, apesar de sua filiação histórica às vertentes construtivas da arte, tal filiação pode ser bastante problematizada.
De uma maneira geral, o que caracterizaria a escultura construtiva seria sua capacidade de constituir-se a partir do conceito da montagem: ela se define, por assim dizer, fundamentalmente pela justaposição de materiais e formas. Parecem nunca ter sido parâmetros absolutos para Amilcar de Castro as esculturas de Rodchenko, Tatlin, Moholy-Nagy e mesmo Naum Gabo. E nem as esculturas de uma segunda e uma terceira geração de construtivos como Calder, David Smith, Caro, Max Bill, Franz Weissmann, ou mesmo dos minimalistas.
Em contraposição a esses últimos, inclusive, Amilcar jamais pensou sua produção como constituída de elementos modulares justapostos em intervalos constantes e/ou em progressão. Como foi mencionado, na obra de Amilcar de Castro cada peça é una, sendo fundamentalmente todas. E também nunca foi crucial para ele, no âmbito da constituição de suas peças, o lugar onde elas seriam colocadas. Pelo menos em tese, uma escultura de Amilcar pode ser colocada em todos os lugares.
Já em contraposição aos outros artistas citados, a escultura madura de Amilcar de Castro quase nunca se constituiu a partir de encaixes, modulações articuladas. Suas esculturas não poderiam nunca – nem em tese – serem decompostas em partes.
Neste sentido, sua obra seria a própria negação dessa lógica construtiva: cada uma das peças do artista é única e indivisível, quase que totalmente anônima em suas formas geométricas básicas (o quadrado, o retângulo, a circunferência).
Se fosse muito importante nos prendermos a filiações, poderia ser dito que, dentre as vertentes derivadas do cubismo, a obra de Amilcar – mesmo que de maneira pouco ou nada consciente – talvez esteja mais próxima dos parâmetros do purismo de Ozenfant e Jeanneret. Afinal, a maneira como o artista mineiro operava com a forma geométrica plena do quadrado e da circunferência não deixa de parecer aspirar ao “clássico”. Ao purismo também interessava a forma indivisa, o equilíbrio, a estabilidade – conceitos frontalmente contrários ao fragmentário, ao dinamismo e à instabilidade da arte experimental que caracterizariam as vertentes construtivas mais divulgadas.
Porém, esse classicismo anônimo e estrutural fica aparentemente comprometido por aqueles cortes característicos das esculturas de Amilcar, cortes esses que impulsionam aquelas formas bidimensionais, puras e solenes, a ganhar a tridimensionalidade, a ganhar o mundo, por assim dizer.
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O próprio termo “corte” leva a pensar numa ação dramática a romper a inércia das formas geométricas das quais Amilcar partia para desenvolver suas peças. Levando-se tal aspecto em consideração, alguém poderia imediatamente pensar que nesse viés estaria o caráter expressivo da sua obra.
No entanto, o corte decidido sobre a matéria, que efetivamente a dinamiza, não pode ser considerado como um índice inequívoco de expressividade, no sentido que se costuma dar aos artistas que fazem dos elementos de sua subjetividade a força básica de seu trabalho (e o gesto impetuoso sobre a matéria seria, a princípio, um índice importante de tal característica).
A princípio, poderia ser até legítimo tentar associar a produção de Amilcar a toda tradição escultórica surgida no segundo pós-guerra e que tentava trabalhar de maneira expressiva a matéria. Afinal, quando ele começa a produzir as peças com corte,a escultura abstrata de pendor expressionista estava no auge, sobretudo na Europa.
Porém, a escultura de Amilcar de Castro – com seus rasgos potentes da matéria – não pode ser nem minimamente associada às produções de artistas como os irmãos italianos Arnaldo e Giò Pomodoro, por exemplo. Arnaldo, apesar de também utilizar a estratégia da incisão em formas geométricas (cilindros e esferas), confere a esse ato um forte apelo ornamental. Repleta de efeitos estetizantes, sua escultura está muito longe do caráter seco e sólido dos cortes de Amilcar.
O mesmo poderia ser dito quanto às obras de Giò Pomodoro. As ondulações (e não propriamente cortes) que promove na matéria, embora confiram às peças uma sensualidade aparentemente muito mais verdadeira do que aquela percebida nas obras do irmão, também parecem bastante distanciadas do universo formal de Amilcar.
Por mais conexões que se tente estabelecer entre a escultura de Amilcar e a de seus contemporâneos expressionistas abstratos, o que parece certo é que, na obra do primeiro, o corte não é expressão ou, pelo menos, não é expressão como índice de subjetividade acoplado à estrutura da obra. Pelo contrário: o corte nessas esculturas é recurso de estruturação da forma final, assumida quando de sua passagem de sua condição bidimensional para a condição tridimensional. O corte em Amilcar é um traço estrutural, não um adereço.
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A expressão “seco e sólido”, usada acima para definir os cortes que Amilcar produzia na matéria, aqui foi usada para confrontar sua escultura com representantes da escultura expressionista abstrata, onde alguém poderia ser tentado a situar a produção do artista. Contra a talvez excessiva busca de sensualidade da matéria percebida nesse tipo de escultura o artista brasileiro oporia a sobriedade do corte simples. Um corte certeiro, sem arrependimentos, seguido de torções também decididas. Daí serem secos e sólidos, daí produzirem obras ainda “clássicas”, mas que não deixam de possuir, no entanto, uma certa sensualidade -- ou, pelo menos, uma disposição de diálogo mais efetivo e afetivo com o mundo. E seria justamente essa disposição que –igualmente de maneira definitiva – separa a obra de Amilcar de Castro da obrado norte-americano Richard Serra, um dos escultores mais significativos da arte internacional da segunda metade do século XX.
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Apesar das diferenças profundas que separam os trabalhos dos dois artistas (gerações diferentes, formações diferentes, contextos diferentes), alguém menos atento pode encontrar neles uma certa semelhança: ambos usam chapas de ferro grossa, ambas são sólidas e precisas, etc. Porém, aquela disposição ao diálogo que se percebe na obra de Amilcar não é visível na escultura do artista norte-americano. A produção de Serra tende a ser fechada em si mesma, recusando-se a se relacionar com o público, a não ser quando se coloca conscientemente como obstrução e/ou ameaça.
Já as esculturas de Amilcar – e aquela instalada na Praça da Sé, em São Paulo, talvez seja o exemplo mais emblemático –, ao se projetarem do plano rumo ao espaço tridimensional, tendem a criar um espaço de passagem que acolhe, liberando o ar, a luz, o fluir das pessoas.
Numa sociedade agredida de tantas maneiras, Amilcar, com uma chapa de ferro e um corte decidido, dialoga em vez de ameaçar, abraça ao invés de obstruir. E essa disposição para o diálogo acolhedor e potente com o observador e com o entorno(sem nele dissolver-se ou dele depender) talvez seja a melhor contribuição de Amilcar para a escultura dos últimos 50 anos.
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Finalizando, creio ser interessante levantar algumas questões.
O fato de o contexto artístico brasileiro ter propiciado uma poética tão singular como a de Amilcar de Castro talvez não seja mero acaso. Além dessa generosidade sincera de sua obra, parece existir algo a mais que surge do fato dessa obra ter se desenvolvido aqui.
Numa cultura onde as tradições escultóricas preexistentes nunca tiveram força e visibilidade suficiente para servir de parâmetros a serem superados (incluindo aqui não apenas a escultura “acadêmica” de Rodolfo Bernardelli e outros, mas também a escultura modernista de Victor Brecheret e Bruno Giorgi e aquela colonial),coube a uma modalidade bidimensional – o desenho – apontar para Amilcar de Castro o caminho a seguir no universo do tridimensional. (É por esse motivo que seus interlocutores não são os escultores, mas sim Tarsila do Amaral, Alfredo Volpi, Alberto da Veiga Guignard, Mira Schendel e outros).
Tal situação vem demonstrar que nem sempre a inexistência de uma tradição (ou o fato de não ter contra quem lutar) pode ser prejudicial ao surgimento do novo ou, pelo menos, do absolutamente singular.
Milão, Itália
Porto Alegre, Brasil
Porto Alegre, Brasil
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