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2023
Amõ Numiã
Por
Daiara Tukano

Antes de o tempo existir, surgiu um pensamento — Kahtiri, a vida —, que ganhou forma de mulher, a grande avó. Ela, que pensou e continua a pensar a vida, criou quatro trovões que organizaram a matéria, e um quinto, feito à sua semelhança, o grande avô. Juntos, criaram o guia de todos os tempos e começaram a vida com a cobra grande e muitos peixes. Suas curiosidades desejantes inauguraram a vida dos animais da floresta.

Do desejo de povoar o mundo, surgiram os primeiros homens que receberam do grande avô ferramentas repletas de poder; seguiram acompanhados das duas primeiras mulheres, Amõ Numiã, que dão nome a esta exposição. Com a vida que sopraram em seus ventres, essas mulheres criadoras pariram dois dos mais importantes entes da ancestralidade Tukano, que originaram os povos, as línguas, as mirações e a organização da sociedade.

Este é um resumo de muitas histórias que ouvi, li, reuni e reelaborei ao longo de anos. Mais do que elementos de uma cosmovisão, são aspectos de uma Cosmopotência: narrativa em curso de um mundo que continua se autogestando. Por meio da visualidade, com cores e desenhos, vou tecendo diálogos com meus parentes, navegando na trama da cosmopotência e lançando flechas para que múltiplos modos de conceber a vida possam ser reconhecidos.

O que a cultura eurocêntrica nomeia como “arte” não possui equivalente no contexto do meu povo. O que produzo no campo da visualidade tampouco obedece aos parâmetros dessa categoria. As cores vibrantes e os padrões ritmados de Hori não produzem imagens figurativas ou abstratas, mas evocam a experiência coletiva de aspectos da existência que não se revelam ao olhar. Hori é a miração que se manifesta desde o parto do kahpi, a ayahuasca.

Ao evocar as Amõ Numiã, reflito sobre as transformações de nosso tempo que revela a destruição provocada por uma cultura misógina, racista, colonial e predatória. Nesta exposição, que começa e termina com as primeiras mães da criação, conecto imagens de outras mulheres de tempos primordiais. As mulheres indígenas carregam vozes que abrem caminhos e multiplicam relações. Nossas vozes ecoam um pensamento: vida, Kahtiri.

Añu.

Daiara Tukano

Meu nome tradicional é Duhigô. Pertenço ao clã Eremiri Hãusiro Parameri do povo Yepá Mahsã, mais conhecido como Tukano, habitante originário da região amazônica do Alto Rio Negro.