MENU
2023
Vestígios do dia
Por
Antonio Gonçalves Filho

Um caminho para situar a obra da artista Ana Amorim passa certamente pelos conceitos difundidos por um movimento como a Internacional Situacionista, ativo nos anos 1960 e lembrado especialmente pelos textos do pensador Guy Debord (1931-1994), autor do livro A Sociedade do Espetáculo. Nele, o escritor francês critica o consumismo contemporâneo, definindo-o como produto de uma sociedade capitalista que transforma a cultura em mercadoria.

Ana Amorim, resistente a qualquer associação com espaços públicos ou privados comprometidos com esse propósito, acabou por firmar consigo mesma um contrato que não permitiria esse tipo de uso mercantilista da obra de arte.

Isso aconteceu em 2001, quando a artista redigiu seu Contrato de Arte. Basicamente, ele recusava sua ligação com instituições (museus, galerias) que recebessem ajuda financeira de empresas cuja finalidade era usar a arte para legitimar atividades ilícitas (em inglês, uma prática comum identificada como "artwashing", correspondente à lavagem da imagem corporativa por meio da arte).

Esse contrato, em vigor de 2001 a 2016, dificultou a atividade de Ana Amorim como artista, sendo por causa dele reduzida ao estereótipo de “difícil”. No ano seguinte à redação de seu “contrato”, ela, então, começou a elaborar seu primeiro mapa psicogeográfico (2002), apropriando-se de um conceito de Guy Debord, em que o escritor associa o comportamento social de indivíduos ao meio geográfico em que vivem.

Era um mapa diário, em que registrava sua rotina em folhas de acetato. Ao final, 52 blocos de mapas espectrais (um por semana durante um ano) acabaram constituindo o processo embrionário de uma série em que predominam a repetição e a serialização (procedimentos relacionados à arte conceitual).

Desde então, esses mapas da rotina diária de Ana Amorim assumiram variados formatos: em 2005, eles estiveram estreitamente ligados ao testemunho de lutas sociais (do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Em 2012, mapas translúcidos (caneta sobre papel vegetal) registravam experiências pessoais (como, por exemplo, uma visita ao dermatologista). Finalmente, em 2016, quando optou por encerrar seu “contrato”, a artista deu início a uma série de bordados (presentes desde 2010 em sua obra) nos quais imprimia a passagem do tempo (ela contabilizou, inclusive, o número de minutos vividos desde seu nascimento). Em 2018, uma instalação com 16 peças de algodão bordado sobre tecido preto resumia o itinerário da artista e seus passos em cada jornada empreendida naquele período.

Há um sentimento de liberdade visível nos mapas que antecederam a pandemia do coronavírus. Nos bordados de 2019, Ana Amorim registra as viagens de avião de São Paulo a Valência, passando por Londres, cidade onde viveu por oito anos. No mesmo ano, os mapas de Ana Amorim passam a incluir materiais como a caneta acrílica branca sobre papel preto, em que a relação vida e obra parece ainda mais nítida, abrindo caminho para os mapas em que transcreve manifestações políticas de rua contra uma possível volta do regime ditatorial.

De 2020 em diante, a situação do Brasil passa a ocupar um espaço cada vez maior nos mapas desenhados por Ana Amorim. Notícias políticas sobre o País (como as campanhas de desinformação do governo sobre a pandemia) mesclam-se a registros de atividades pessoais rotineiras (uma ida ao restaurante, por exemplo) em instalações de dimensões gulliverianas (que chegam a três metros de largura).

O ponto de partida da obra de Ana Amorim foi uma histórica peça da arte conceitual, assinada pelo norte-americano Joseph Kosuth (Uma e Três Cadeiras, 1965). Nesse trabalho, em que associa uma cadeira real à reprodução fotográfica e sua definição textual, Kosuth, contestando a primazia do objeto, afirma que o conceito é fundamental e que uma obra de arte deve, antes de tudo, provocar reflexão.

Professora de inglês, tradutora e artista em período integral há quase 40 anos, Ana Amorim reitera o conceito de Kosuth, apresentando na atual exposição obras que prestam tributo a esse legado: os mapas pretos, os bordados amarelos, os mapas de suas jornadas pelo mundo e a grande obra Numbers of Days Lived, que contabilizou os mais de 22 mil dias da experiência existencial de Ana Amorim até o ano de 2019.