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2008
Arte com visão
Por
Gerardo Mosquera

A gruta (After Johan Moritz Rugendas, “Grotte près de S. Joze” –1835), 2006 colagem sobre impressão [collage on print], detalhe [detail] 90 x 130 cm | edição de 5 exemplares [edition of 5] coleção do artista [collection of the artist]

Certa vez, eu disse que a coisa mais importante que Max Bill fez em sua vida foi visitar o Brasil. O discurso concretista que o artista e arquiteto suíço desencadeou durante suas duas visitas no início da década de 1950 (em uma delas viajou pelo país a convite do governo) produziu um impacto tão extraordinário que marcou a orientação geral das artes plásticas brasileiras até os dias de hoje. Desta forma, tem se insistido no caráter construtivo da arte brasileira, a ponto de poder-se pensar que se trata de uma afirmação clichê, bem ao gosto dos historiadores da arte. Mas quando viajei pelo Brasil alguns anos atrás, comprovei que o clichê era verdadeiro: a poética concretista, seus remanescentes e fragmentos encontram-se fortemente instalados na maneira de se fazer arte no país. Observando a obra de artistas de diversas idades e tendências em numerosas cidades, comprovei que os brasileiros tendem a estabelecer estruturas formais e de conteúdo, criar “novas realidades” insólitas, ordenar componentes de caráter serial, trabalhar por adição de unidades, e usar a geometria ou certa pulsão matemática de maneira direta ou indireta...

Não obstante, este caso único de influência do concretismo sobre um dos mais ricos cenários da arte atual se tem manifestado mais pela forma como os brasileiros o contestaram, desorganizando-o com grande inventividade, do que como o seguiram. Assim, é tanto verdade que artistas clássicos como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Cildo Meireles procedem da zona analítica do concretismo, do construtivismo e da abstração geométrica, como que a subvertem, transformando-a por caminhos que a contradizem de forma incomum. Estes caminhos inclusive implicam em uma humanização e aproximação entre arte e vida que parecem estar nas antípodas da agenda da arte concreta. Mas desordenar não significa negar por completo. Precisamente, é esta tensão entre o uso privilegiado de estruturas formais, conceituais e semânticas bem delimitadas e sua simultânea negação em direção a outros territórios, sem, no entanto, apagá-las, a marca característica de grande parte da arte brasileira atual, da pintura ao vídeo. Devo esclarecer que não me refiro apenas à prática histórica particular do neoconcretismo, mas sim a uma poética geral das artes plásticas brasileiras desde os anos 1960 até a atualidade, iniciada com a ruptura radical promovida por este movimento.

Ademais, os artistas do Brasil possuem uma sensibilidade única em relação ao material e uma espécie de proximidade íntima com ele. Em virtude da influência do concretismo, suas obras tendem a fundamentar-se também no objeto, em sua realidade, em sua fisicalidade, ainda quando transitam por poéticas pós-conceituais. Obviamente, falo de orientações prevalecentes, que coexistem com muitas outras práticas, mas cuja persistência espanta em um país tão vasto e diverso, que, além de tudo, desfruta da maior descentralização de cenários artísticos da América Latina.

Existe outro estereótipo marcante sobre a arte brasileira: sua sensualidade, entendida ao mesmo tempo como adjetivação e como participação do corpo e dos outros sentidos além da visão. É significativo que os dois clichês que tendem a ser impingidos à arte brasileira pareçam antitéticos: construtivismo e sensualidade, grid e corpo. No entanto, eles coexistem em interlocução, dialogando e transformando-se mutuamente. Desta forma, seguindo estas direções, os artistas brasileiros introduziram no pós-minimalismo e no pós-conceitualismo – talvez paradoxalmente – expressividade, sensualidade e jogo, assim como rigor e estruturação; tornaram complexa ao máximo a estética do material, dotando-o, além de tudo, de uma carga subjetiva; e sofisticaram e estetizaram a arte da instalação de um modo particular. Atrever-me-ia a apostar que, sem ler a ficha de identificação, poderia dizer se uma instalação foi feita ou não por artistas brasileiros.

Todas essas características têm contribuído para diversificar, tornar mais complexa e também subverter a prática desta “linguagem contemporânea internacional”, que se foi estabelecendo como um “inglês” da arte como o resultado tanto da explosão de sua circulação global nos últimos doze anos como de práticas locais que se multiplicaram por todo o mundo. Especialmente a escultura e a instalação têm alcançado desde os anos 1960 um refinamento e uma complexidade muito particulares no Brasil. Tal prática caminhou na contramão de uma direção que, em termos gerais, era bastante frequente na América Latina até recentemente. A neurose da identidade, que tanto afetou a cultura desta região, levou a uma ansiedade de mostrar diferenças particularizantes tomadas do âmbito local, enquanto se apropriavam de recursos artísticos homogêneos. Colocando de forma esquemática, era uma combinação entre metodologias “internacionais” e formas e conteúdos locais, na qual as primeiras eram tomadas tal qual para examinar, expressar e representar componentes culturais locais, e experimentavam adaptações e recriações durante o processo. Nos piores casos, chegou-se a uma autoalteridade que procurava satisfazer neoexotismos pós-modernos.

As artes plásticas brasileiras, ao contrário, reverteram tal esquema ao abrasileirar metodologias internacionais, ou ao produzi-las localmente, com o propósito de representar, discutir e comunicar conteúdos “universais”. Seu caráter não é definido mediante representações ou ativações importantes da cultura vernácula, sua religião, sua história e, em geral, seu contexto particular, nem pelo uso da simbolização – outra característica frequente na arte latino-americana –, mas por uma maneira específica de produzir arte contemporânea. É uma identidade desinteressada da “identidade”. Uma identidade pela ação, não pela representação. Mas também uma práxis da própria arte enquanto arte, que estabelece constantes identificáveis, construindo uma tipologia cultural a partir da maneira de se fazer arte, e não acentuando os fatores culturais introjetados nela. Desta forma, grande parte da arte brasileira é identificável, porque se refere mais às maneiras de construir textos do que de projetar contextos.

José Damasceno é simultaneamente um paradigma dos caminhos da escultura no Brasil e um artista de personalidade única. Sua obra, muito variada, jamais nos deixa indiferentes porque parece nos fazer perguntas. Não há uma constância formal, técnica ou de uso de determinados procedimentos ou materiais que permita definir seu estilo em primeira instância. Tampouco há um programa claramente estabelecido: seu trabalho é uma sucessão de aventuras e surpresas. Com exceção da série Organograma, que talvez por lidar com o tempo se baseie na repetição, e de suas instalações de objetos que formam desenhos na parede, o artista não repete fórmulas ou esquemas: cada obra é uma reação e uma indagação particular. No entanto, se examinamos retrospectivamente sua vasta produção, notamos uma coerência, uma marca própria difícil de definir, algo que é mais fácil sentir do que discursar a respeito. O artista falou de “uma unidade originada no campo da imaginação”, de “uma natureza mental” que determina o que seleciona e suas formas.

De forma mais objetiva e adequada, tem-se afirmado que o artista trabalha com sistemas. E de fato assim é, tanto desorganizando os existentes como criando outros novos, ou estabelecendo relações insólitas entre eles. Não obstante, se não acrescentamos outros matizes cruciais, poder-se-ia pensar em uma obra analítica, objetiva ou centrada em uma pura pesquisa formal. Justamente o contrário: poderíamos dizer que sua obra é “pós-estrutural” na medida em que não procura fixar o sentido nem perceber os sistemas como entidades ordenadamente funcionais. Mas seria mais preciso afirmar que Damasceno é um poeta dos sistemas. Tanto por seu enfoque subjetivo como pelas imagens sintéticas que produz, mas sobretudo por tornar as coisas mais complicadas ao invés de dissecá-las. Ou seja, porque intenciona seguir a meada da realidade viva, sentindo-a como um processo múltiplo, aberto, proliferante, mais do que atuar a partir de um laboratório artístico-conceitual. Toda sua obra é uma produção de complicações, uma complexificação do simples por meio de deslocamentos e subversões desencadeadores de sentidos. Isso porque ele não enxerga os sistemas como conjuntos harmônicos, mas como uma dinâmica de forças em tensão, um processo de equilíbrios e desequilíbrios que produz mudanças e movimentos, e cujas tensões procura examinar com sua arte.

Damasceno tem insistido que aquilo que nós chamamos de “realidade” é um tecido de inúmeras camadas, dimensões, densidades e porosidades de todo tipo. Para o artista, trata-se de uma constelação de universos diferentes, de uma imensurável rede de canais de grande complexidade estrutural, que se movem e se transformam de acordo com outro universo vastíssimo, o dos diferentes pontos de vista desde onde a abordamos. Uma espécie de funcionalismo transcendental aberto rege sua visão de mundo, e sua postura diante dele é a de um explorador, um Pioneiro. Nas tradições afro-cubanas, fala-se de “olhos que têm visão”, capazes de enxergar mais além. Depois de perder a visão de seu olho esquerdo por causa de um acidente, Damasceno disse que enxerga melhor. É como se a perda de uma capacidade física tivesse produzido a ampliação de um outro tipo de vidência, já atuante em um artista cujo propósito é explorar os intricados nós que tecem o universo, e buscar um “instante poético que seria a síntese de todos esses movimentos”, como ele mesmo expressou. Creio que talvez o faça a partir de uma consciência da impossibilidade da tarefa. Há algo de utopia pessimista em seu trabalho. Daí que sua obra tenha mais a ver com o mistério do que com a claridade, porque se coloca na própria tessitura dos sistemas que explora. Por isso, ao final das contas, o artista inventa muito mais do que analisa. De qualquer maneira, suas peças ficam como revelações logradas em momentos de hiperlucidez, como se fossem as instantâneas de um paparazzo metafísico que nos desvela visões pelas quais, por um momento, se vislumbra alguma pista dos Segredos.

É que Damasceno é um neorromântico que vê o mundo como um mistério, nas antípodas do cinismo que prevalece no mundo atual da arte. Um neorromântico interessado na ordem e na ciência, que busca visitar, por meio da arte, estes pontos abstratos em que as matemáticas se dissolvem na poesia. Um neorromântico cuja subjetividade, ao invés de olhar para dentro do sujeito ou apenas para a existência, dedica-se em buscar um imaginário da matéria. Um neorromântico no qual o humanismo se coloca em função de um Verstehen das coisas, forças e relações físicas do universo, de um conhecimento poético do macro e do micro, daquilo que nos rodeia, mas encontra-se além de nossa dimensão. Daí o encontro peculiar entre materialidade e subjetividade em sua obra. Adriano Pedrosa já havia assinalado uma dualidade nela: de um lado, “o orgânico e o corporal”; de outro, “o geométrico e o matemático”. E advertido imediatamente que ambos os processos se encontram entrelaçados.

Como mencionei acima, trata-se de uma característica das artes plásticas brasileiras, que em Damasceno alcança um clímax de subjetividade metafísica. Por mais simples que pareçam suas esculturas e instalações, por mais fundamentadas que estejam em uma pulsão tanto objetual como dos objetos, elas se encontram sempre regidas por uma vontade transcendental, um ir além do físico e sua ciência. “O objeto é um todo de todos. [...] Habitar este objeto implica considerá-lo um mundo”, disse Tunga, comentando uma obra de Damasceno. Por outro lado, novamente como em tantos artistas brasileiros, encontramos uma influência construtiva em seu pano de fundo – ao mesmo tempo suave e arraigada –, oculta por trás da vibrante subjetividade das obras. Por mais insólitas, inventivas e provocadoras que elas possam ser, quase nunca “se soltam”. Não assinalo isso como uma limitação, mas sim como uma característica que contribui para o caráter destes trabalhos. Uma parte importante da arte brasileira baseia-se em desarrumar imagens preexistentes, não como um procedimento de desenho, mas dentro de uma variedade de estratégias estético-discursivas. De certo modo, elas subvertem desde dentro o marco construtivo, sem rompê-lo, mas ampliando suas possibilidades para campos inéditos, pulsando uma tensão criadora de significados. Damasceno situa-se no grau zero da vontade construtiva, da ordem e da desordem, e desde ali nos surpreende com seus atos de magia e filosofia. Certa vez, ele colocou uma pergunta assombrosa e inquietante: nós nos dedicamos a observar a arte, mas e se a arte nos olhasse? Eu responderia que sua arte tem visão.

 

Texto publicado no catálogo editado para a exposição Coordenadas y Apariciones, de José Damasceno, no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de 8 de fevereiro a 23 de junho de 2008.