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2024
Balanço alicerce — o ponto do poético na oscilação
Por
Bianca Coutinho Dias

Uma dobra sintetiza a sutileza do nome desta exposição, que condensa um período de mais de 15 anos de produção de Tatiana Blass. Composta por cerca de 40 trabalhos, a mostra abarca momentos distintos de uma trajetória múltipla que transita por diversos meios — pintura, vídeo, escultura e instalação — e que nunca deixou de abrigar a ambiguidade e a beleza.

“Balanço alicerce” é um título que, em exercício de redução poética, revela a ética especial do amplo percurso de uma artista que, mesclando e justapondo variadas referências — teatro, cinema, literatura e música — transita de forma brilhante, por vibração e contágio, regiões e linguagens fronteiriças. A exposição deslinda a instabilidade própria de um trabalho que exibe um mapa de vestígios de espaços íntimos e pensamentos, de relações com as coisas em estado de latência. A instabilidade, aqui, se refere ao mais profundo rigor que se pode dar ao traço, à rasura, à pincelada, à cada gesto que se encontra na oscilação entre o firme e o dobrável, entre matérias e linguagens heteróclitas.

Esse agudo ponto de invenção pode ser vislumbrado na série “Bagunça”, trabalhos produzidos a partir de brincadeiras em que seus filhos iniciavam as pinturas e, na sequência, Tatiana prosseguia, contornando a cena. Assim, aproximando o fazer artístico das brincadeiras infantis, algo se revelou, tão enigmático quanto mobilizador, de uma relação com um saber ainda em estado não-domesticado.

Em uma série de trabalhos que tem como principal referência o dramaturgo Henrik Ibsen, cujas peças — de forte teor psicológico e com personagens que abrigam muitas dúvidas e ambiguidades — chamaram sua atenção em uma residência artística realizada nos fiordes da Noruega, Tatiana constrói ambientes, a partir de cenas de teatro. De alguma maneira, a paisagem magnética do vale estreito e profundo, assim como as habitações e a arquitetura do lugar, ficaram impregnadas em suas pinturas. Os planos se diluem em um só corpo pictórico, tornando indistintos fundo, figuras humanas, cadeiras, mesas e outros objetos que compõem as cenas, sem distinção exata entre forma e cor. Tatiana dilui e reconfigura experiências de temporalidade e contemplação, revelando o mundo por fragmentos do real.

Em outra série de pinturas, estas feitas sobre vidro, há uma inversão da técnica tradicional da pintura a óleo. Realizada no anverso da superfície, a primeira camada de esmalte aplicada sempre fica imediatamente visível, resistindo às sobreposições de novas camadas. A artista cria recortes e intervalos entre os campos de cor na superfície do vidro fazendo o mundo aparecer por meio de vestígios, em uma construção rigorosa e, ao mesmo tempo, sublime de cor e forma.

Suas obras em papel ou tela de algodão — em que o guache se entranha na trama do tecido — guardam uma questão cromática muito singular. Tatiana usa guache que, por característica, tem cor opaca e intensa, e enfrenta o exercício cromático de forma única, com predileção por cores de convivência difícil como laranja com rosa, amarelo limão com marrom, e outras combinações que se atravessam de maneira absolutamente singular.

Em “O resto que fica”, série realizada por ocasião de uma residência artística em Londres, Tatiana realiza intervenções em fotografias de bicicletas abandonadas nos metrôs londrinos, com tinta a óleo branca. Como Alberto Giacometti — que se espantava e se maravilhava com a diferença mínima, radical e singular de cada cena, e dizia “tudo me ultrapassa” — a artista também não fecha os olhos às revelações cotidianas e deixa entrever que aquilo que chamamos realidade é uma construção que nunca está de todo finda, cabendo ao gesto artístico fornecer algum contorno e possibilidade de fruição.

Na seleção de vídeos, quatro duplas de personagens desenvolvem algum tipo de diálogo ou interação. Em “O engano é a sorte dos contentes” um mágico monta seu número de levitação e o que acontece acaba por criar outra forma que deixa entrever e eclodir o caráter enigmático do que  nos cerca. Já em “Hard Water” — cujo título é uma referência à água de Londres, que contém calcário — as roupas das atrizes estão presas a inúmeros fios que saem de carretéis colocados em ganchos nas paredes da sala ou soltos no chão e, à medida que elas se movimentam, os fios se soltam e se emaranham. Do olhar e imersão de Tatiana nos espaços, surgem fragmentos de uma língua íntima e um caleidoscópio de cartografias afetivas diversas, que se interpenetram e mobilizam algo do mistério daquilo que se entranha no equilíbrio tênue da vida.

Na vídeoperformance “Encrenca” — ação que se passa em Ålvik, na Noruega — duas pessoas, uma brasileira e um norueguês, não falam a mesma língua. Como um jogo, cada um fala pausadamente seu idioma de origem para que, em seguida, o outro repita. Como marionetes, eles revezam as funções de comandante e comandado e, através das roupas, gestos e movimentos, revelam desconcertos com inesgotáveis contradições.

“Contratempo” é uma dança coreografada, uma busca de maneiras para escapar em direções opostas, no sobe e desce de escadas rolantes. Trata-se do ruído do corpo — e do próprio pensamento — que busca seu espaço de existência. É, efetivamente, no sentido radical indicado pelo filósofo Philippe Lacoue-Labarthe, “uma experiência como travessia de um perigo na relação com o outro”.

A série “Metade da fala no chão” — a mesma da instalação permanente “Piano Surdo”, que faz parte da Coleção do Instituto Figueiredo Ferraz — traz esculturas em que instrumentos musicais são emudecidos com cera, tubos de latão, lã de ovelha crua ou bronze fundido, presentes na exposição “Apito” e “Clarinete”.

“Reviravolta” faz parte de um conjunto de obras criadas com mangueiras de borracha e ferro entrelaçadas, um estudo das disposições, deformações, torções e alongamentos que modificam a ação e presença matéricas no mundo.

Em “Entrevista” — série de esculturas fundidas em ferro — cabeças e equipamentos formam um só corpo. Em “Entrevista #3”, microfones com fios plugados à parede são enfiados em uma cabeça. Já em “Entrevista #2”, o olho da cabeça de quem filma se junta ao visor da câmera, e a boca de quem é filmado se conecta à lente.

O conjunto das obras de Tatiana Blass transcende o uso de uma técnica ou linguagem única e cria uma atmosfera comum que, sem ser óbvia, evoca grande força poética na interseção e justaposição de tempos e elementos. Aqui, vídeos abrigam força pictórica e estabelecem relações cromáticas, as personagens podem se desdobrar em cenas silenciosas ou em sussurros presentes nas pinturas e nas esculturas.

Os trabalhos inspirados no teatro igualam o papel em branco ao palco. São pinturas fantasmagóricas, portadoras de ambiguidade em que tudo se mistura e decanta: pessoa, sombra, cadeira, a revelação enigmática de coisas que estão por debaixo da tinta. Uma fina melancolia atravessa as solidões, fazendo pulsar o território do informe e do indomesticável. Este é o lugar que interessa e para onde a artista, em vertigem, nos conduz. Nas esculturas as formas respiram, porosas e alegóricas, e parecem movimentar-se em direção a outras formas, instáveis e pulsantes como a vida.

O ato de transfigurar a representação, singularizando cada obra em uma multiplicidade própria de linguagens, inclui ruídos e sons como uma sinfonia que, ao final, revela um quase silêncio. Um burburinho, como um poema de E. E. Cummings: “nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio: no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram, ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto”.