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2019
Bárbara Balaclava
Por
Moacir dos Anjos

Ao longo de uma década, Thiago Martins de Melo desenvolveu uma obra em pintura que se afirma, entre atrativa e estranha, como uma das mais singulares de sua geração no Brasil. Em seus trabalhos, quase sempre feitos em óleo sobre telas de grandes dimensões, não há qualquer lugar para a contida expressão abstrata que marca as obras de muitos pintores brasileiros desde a década de 1950. Tampouco se encontram nela vestígios da representação elogiosa e pacífica de personagens e paisagens nativos, tão cara aos pintores modernistas do país e àqueles que ainda agora animam essa tradição. Suas pinturas, junto às realizadas por poucos outros no Brasil, assentam-se em bases distintas, tanto em fatura como em assunto. São feitas de pinceladas rápidas e fortes que acumulam, sobre o suporte usado, tinta bastante para criar, em cores vibrantes, acidentados relevos e planos, ecoando uma linhagem expressionista que, embora criticamente reconhecida, nunca se firmou hegemonicamente no país. Procedimento de construção que o artista julga adequado para lidar com a gravidade e a urgência dos temas que lhe afetam e importam: as violências que os detentores do poder real historicamente impõem a quem escape às normas que estabelecem ou desafie os privilégios de classe, cor e gênero de que desfrutam. Em particular, seus trabalhos se debruçam sobre os abusos por séculos cometidos contra as populações de origem indígena e negra no Brasil. São pinturas que articulam e amalgamam forma e conteúdo para narrar histórias dolorosas, fragmentadas e inconclusas. Histórias que não são somente, porém, de aniquilamento do outro subjugado pela força, mas também de resistências.

O fortalecimento da vontade de contar eventos complexos que envolvem muitos personagens e fatos fez com que os trabalhos de Thiago Martins de Melo se tornassem insuficientemente extensos no decorrer dos anos, não importando o quanto crescessem as dimensões de suas pinturas. Passaram por isso a incluir, articulados ou não às telas, objetos firmados sobre paredes e chão. Esse uso mais alargado do espaço é patente no conjunto de pinturas, esculturas e coisas diversas que formam o trabalho chamado Martírio (2014) [pp. 138-41]. Em duas grandes telas, o artista pintou, sobre a paisagem de uma Amazônia quase arrasada, os rostos de muitos homens e mulheres que foram mortos lutando contra a devastação simbólica e material incessantemente promovida por aqueles que somente enxergam, naquela região, oportunidades de ganho patrimonial alto e imediato, seja através da extração de minérios, do extrativismo predatório ou do uso da terra da mata para projetos agropecuários. A violência desmedida deferida contra quem se opõe a esse intento privado (muitas vezes com suporte governamental) está também indicada nas muitas cabeças esculpidas de negros, índios e mestiços que, envoltas em fios de arame farpado, são fixadas em estruturas verticais que se assemelham a instrumentos de martírio decorados com armas e motoserras. O fato de essas estruturas também evocarem formas totêmicas sugere, porém, que não se perdeu a luta ainda, e que o conflito, de carne e de espírito, segue um curso aberto. Sugestão reforçada pelas figuras de índios que parecem guardar o ambiente, tornando-o não somente um registro de violências desmedidas mas também um modo de honrar aqueles que nunca vão se curvar aos que destroem formas de vida ancestrais.

A estratégia de deixar as pinturas transbordarem para o espaço não foi, todavia, suficiente para satisfazer o intento de contrariar histórias dominantes e motivações oficiais, fazendo com que imagens em movimento fossem gradualmente incorporadas às construções de Thiago Martins de Melo. Tomando as próprias pinturas como arquivo de cenas, o artista passou a articular fotografias de fragmentos de muitas delas em curtas animações stop motion, abrigando ali o que mesmo telas e objetos de grandes dimensões não poderiam conter. Exibidas em monitores incrustrados em pinturas, essas animações expandiram no tempo a capacidade narrativa daquelas, tornando-as formas de expressão híbridas e abertas. É no filme Bárbara balaclava (2016) [pp. 257-73], contudo, que Thiago Martins de Melo dá um passo além na voracidade de fala que sua obra exibe, bem como no desejo de expandir os sentidos da produção pictórica mesmo quando esta não está materialmente exposta. Durando pouco menos de um quarto de hora, o trabalho edita e anima, de modo acelerado, imagens parciais de quase quatro mil pinturas em pequeno formato e de outras poucas no usual tamanho maior, feitas pelo artista especialmente para serem usadas nesse projeto.

Se Bárbara balaclava condensa e alarga a ambição narrativa que Thiago Martins de Melo demonstra em sua trajetória, traz inalterada, senão ainda mais firme, a vontade de desafiar narrativas que justifiquem ou normalizem práticas de dominação no país. Nesse sentido, o filme pode ser entendido como o esboço de uma contra-história do Brasil, feita mais de sugestões ou pedaços do que de um discurso escorreito e unificado. O que não implica deixar de apontar com clareza, nas torrentes de imagens que se sucedem no trabalho, causas e consequências das desigualdades que fundaram e sustentam o país. O título do filme faz referência imediata às máscaras de tecido que, originalmente usadas para proteção contra o frio, servem para a ocultação da identidade de policiais em ações repressivas e, principalmente, daqueles que se insurgem contra formas institucionalizadas de violência social e precisam se proteger de represálias de quem detém o poder de fato. Que servem para resguardar a identidade daqueles que são considerados párias ou bárbaros por leis e convenções, tal como implicado, não sem ambiguidade, no título do trabalho. Daqueles que se assumem sem rosto somente para lutar, paradoxalmente, por seu direito de ser visto e escutado.

Em edição vertiginosa de imagens – acompanhada de visceral trilha sonora –, Bárbara balaclava exibe cenas de conflito e confronto nas histórias recente e distante do Brasil. Avança e recua no tempo para deixar clara a longevidade dos processos de dominação violenta que expropria, por séculos a fio, riquezas materiais e simbólicas das populações nativas do país. Para atestar, em paralelo, os mecanismos de subjugação corporal e psíquica imputados aos milhões de mulheres e homens negros escravizados no passado do Brasil e que, transmutados em aberta ou dissimulada discriminação racial, alcança os seus descendentes atuais. Ao compor esse esgarçado painel social, Thiago Martins de Melo inscreve disputas contemporâneas por terras ou ideias em uma persistente narrativa de exclusões e apagamentos (figurados e físicos) que atravessa a existência do país. Em simultâneo, contudo, mobiliza memórias, mitos, crenças, rituais, sexo e tudo que resiste à morte e fortalece corpos para contar uma insistente história de insurreição daqueles povos e de todos que com eles tecem alianças e laços. Aproximando tradições e cosmogonias insubordinadas às normas colonizadoras de ontem e de agora, apresenta a continuidade, ao longo dos séculos, de uma potência sublevada que resiste à dor e que desafia a arma. Apresenta guerreiros míticos que são, alternada ou concomitantemente, índios e negros, homens e mulheres, carnais e espirituais, bárbaros e civilizados. Que usam outras balaclavas como instrumentos táticos de luta e que combatem um destino que lhes foi imposto como imutável. É um filme que, na articulação temporal que faz entre pinturas e sons, desapazigua disputas e aponta danos infligidos a tantos. É um filme que ignora e subverte o que é dado e que faz, por isso, política.