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2024
Corte, dobra, encaixe
Por
Antonio Gonçalves Filho

A distância entre dois continentes não impediu o encontro do escultor mineiro Amilcar de Castro (1920-2002) com a ceramista japonesa Kimi Nii (1947), mesmo que essa reunião viesse a ocorrer apenas agora, 22 anos após a morte do artista brasileiro. Nesta exposição, Corte, dobra, encaixe, foram reunidas obras dos dois artistas que justificam essa oportuna aproximação entre Ocidente e Oriente, chamando a atenção para o parentesco formal entre as esculturas de ferro e aço corten de Amilcar, produzidas entre 1980 e 1996, e as de cerâmica realizadas por Kimi Nii entre 1989 e 2023.

Em ambos os casos, o corte nas peças constitui o traço que identifica um propósito estrutural de matriz construtiva, a despeito das diferenças de procedimento que distanciam os dois artistas da sintaxe do construtivismo histórico russo. Amilcar renovou essa linguagem antes mesmo de subscrever o Manifesto Neoconcreto, em 1959, inventando, ainda em 1952, uma técnica que ficou conhecida como “corte e dobra”, operação em ferro que produzia formas tridimensionais originárias do desenho no papel ou na cartolina.

Kimi Nii, seguindo a tradição da cerâmica japonesa, tomou partido da natureza maleável da argila e interagiu com a invenção de Amilcar. Instigada pelo corte das chapas de ferro retorcidas e dobradas do escultor mineiro, Kimi retomou uma prática comum entre os pioneiros construtivistas, reintroduzindo o encaixe, típico da escola russa, em suas esculturas de cerâmica. Por caminhos diferentes, ambos chegaram ao mesmo destino: a emergência de figuras geométricas formadas pelo vazio.

Pelas frestas abertas pelo maçarico nas peças do artista mineiro surge uma luz que desenha triângulos e quadrados no espaço. Apenas para efeito comparativo, é um procedimento que o arquiteto japonês Tadao Ando (1941) repetiria anos mais tarde na igreja da cidade japonesa de Ibaraki (em 1999), onde a forma da cruz é definida pela entrada da luz externa nas frestas da capela.

Tanto no caso das esculturas de Amilcar como nas de Kimi Nii, a aparência ambígua dos materiais ajuda a tornar explícita essa relação. A cerâmica, o ferro e o aço corten apresentam sutis diferenças cromáticas, mas a ação irreversível do tempo aprofunda a semelhança entre esses materiais. A ferrugem encontra correspondência nas diferenças cromáticas definidas pelo tempo de queima da cerâmica.

Outro ponto de aproximação: essas peças, a despeito do peso real (algumas com mais de cem quilos), tornam-se leves o suficiente para interagir com o espaço e sugerir novas configurações, a depender da movimentação do espectador ao redor delas.

Outra característica que aproxima as peças de Amilcar e Kimi é a sugestão de um portal de passagem para a luz. No caso do artista mineiro, ela se dá por meio de fendas ou incisões que dividem o bloco de ferro ou aço. Num movimento de retração, a escultura em cerâmica de Kimi fecha-se em si mesma, aproveitando essa luz para destacar a forma geométrica por meio de encaixes no corpo da peça. Aparentemente, uma seria o inverso da outra. Mas só aparentemente.

É preciso considerar a questão histórica que separa o Japão do Brasil quando se observa essa questão de identidade e diferença. O Japão permaneceu fechado por séculos, abrindo-se gradativamente para o Ocidente. A imperfeição foi incorporada na arte da cerâmica japonesa como um modo de contestar a perfeição monstruosa exigida pelos mestres ceramistas chineses aos seus discípulos. Essa “imperfeição” expressava o modo japonês de interagir com o antípoda ocidental.

Em tempo: essa flexibilidade não significou concessão formal. As incisões na cerâmica de Kimi são certeiras como os rasgos nas telas de Lucio Fontana. O trabalho com os volumes é tão rigoroso como a construção de uma escultura de Brancusi ou de Sérgio Camargo.

Esse é um aspecto pouco explorado quando se fala da obra de Kimi Nii, artista formada em design industrial e filha de arquiteto. Sua familiaridade com a arte ocidental remonta à infância, quando o pai a levou, aos dez anos, para ver as obras expostas na quarta edição da Bienal de São Paulo. A paixão de Kimi por Morandi, pintor premiado naquela mostra internacional e artista da predileção de Amilcar, nasceu ali, em 1957, ano da primeira exposição neoconcreta da qual o mineiro participou.

Nessa mesma Bienal, Amilcar conheceu de perto a obra do basco Jorge Oteiza (1908-2003), ganhador do prêmio de escultura na exposição. O impacto desse encontro foi enorme. As formas geométricas geradas pela incorporação do vazio em Oteiza, um contraponto à ortodoxia concreta de Max Bill, levou Amilcar a aprimorar sua técnica de corte e dobra. No que se refere a Morandi, Amilcar viu uma forte afinidade entre sua escultura e a pintura do italiano. Ambos descartavam o espetacular, eram extremamente discretos e operavam num registro anti-ilusionista. Enfim, clareza formal e ética moviam os dois artistas.

Vale lembrar que Kimi Nii trouxe para a tridimensionalidade as garrafas de Morandi. Produzidas em cerâmica, elas identificam a paixão de Kimi pela obra do italiano. Ela fez isso subvertendo a relação entre figura e fundo em que ambos se confundem num plano monodimensional. É preciso enfatizar que a operação corte-dobra de Amilcar, da qual a exposição tem vários exemplos, é a metamorfose de um desenho em que o traço rígido não se apaga com nenhuma borracha. A incisão no metal tem igualmente esse caráter. Na cerâmica, o risco é o mesmo. Como na vida, provam os dois, (quase) tudo é irreversível.