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2023
Daiara Tukano, ou a arte de encantar
Por
Lilia Moritz Schwarcz

Introdução: arte política e vice-versa

Daiara Tukano é uma artista múltipla, complexa e completa. Faz arte com seu corpo, com as cores que encontra na paleta e na natureza, com as letras da luta indígena, com seu ativismo, com sua ancestralidade.

Em sua obra não perseveram as divisões canônicas da história da arte ocidental que, durante largo tempo, procuraram separar a atividade artística da política. Não perseveram também as classificações coloniais que buscaram aprisionar a arte indígena em subcategorias como “artesanato” ou arte “ingênua”.

Além do mais, Daiara faz arte com política e vice-versa. A beleza da forma estética dialoga com os temas de nossa agenda atual e os expande. Diante de seus trabalhos, somos convocadas e convocados a defender a pauta do meio ambiente e da floresta, a ver por meio de olhos que desviam do assim chamado progresso ocidental e nos convidam a entrar em outros mundos e cosmovisões.

Pois na obra de Daiara Tukano tudo germina. Raízes, árvores, a natureza que se revolta diante da destruição imposta pela lógica ocidental, as luzes que formam múltiplos caleidoscópios cromáticos, o traço do naturalista que finalmente dialoga com os seres vivos da natureza.

Daiara Tukano também traz em sua arte a experiência dos feminismos plurais. Da lógica de semear a terra, de trazer a luz consigo, de respeitar as florestas e nelas se integrar.

A artista é também generosa com os suportes, experimentando-se na técnica nanquim, na tinta acrílica, na tecelagem e na plumaria. Sua obra “Kahtiri Ēõrõ” (Espelho da Vida) menos que uma referência apenas nostálgica, é marca do presente, de rituais que não mais ficaram a serviço da curiosidade do olhar estrangeiro — nacional ou internacional — e que finalmente retornam a seus verdadeiros territórios e comunidades.

Daiara experimenta e relê as diversas tradições artísticas ocidentais agora emancipadas nos termos indígenas. Em sua obra, estão presentes referências a uma convenção naturalista e a uma arte contemporânea e a um tempo sem tempo, às cores fortes e aos encantados. Tudo é lido e relido a partir de novos modelos que possuem seu fundamento originário em um povo que possui seu próprio conceito de belo, o hori.

Tal qual sinaleiros dos novos tempos, as obras de Daiara Tukano não respeitam fronteiras fáceis: elas trazem o traçado contemporâneo indígena e, assim, sem ser um manifesto, viram tradução e releitura.

 

Uma conversa com Daiara

Conheci Daiara Tukano em ação.

Eu a vi trabalhando, totalmente imersa na sua ação, em meio às escadarias internas do pomposo e acadêmico Teatro Municipal de São Paulo. Tudo aconteceu no carregado ano de 2022.

Na verdade, Daiara invadiu essa instituição, tão vinculada à branquitude paulistana e que sempre se voltou a apenas uma arte: a Ocidental.

A artista trouxe, então, um longo rolo de papel kraft, e, com sua caneta porosa vermelha, fez uma cobra imensa, dona de muitos encantamentos e sentidos. A cobra subiu e tomou as escadarias feitas do mármore e do cobre, e cobertas por um tapete bordô, se impondo imediatamente frente a esses materiais considerados “nobres”. Nobre era agora a cobra que denunciava as violências cometidas contra as sociedades indígenas, tantas vezes esquecidas.

Nessa época, eu, Pedro Meira e Jaime Lauriano, a convidamos para tomar parte da exposição “Contramemória”; a primeira a ser apresentada no Teatro Municipal, depois da famosa e contestada “Semana de Arte Moderna de 22”.

Daiara entendeu o desafio e o ampliou: tratava-se de disputar o sentido do moderno naquele local icônico, e muito vinculado àquela Semana de Arte, e imaginar outras independências que não aquela às margens do Ipiranga.

A cobra feita pela artista, não só tomou as escadarias do local, como, com sua voz gravada, Daiara Tukano convocou aqueles que adentravam o recinto. Cantava ela: “–Respira, respira”. Tudo muito pausadamente, de maneira a impor o seu lindo e profundo canto, embalado por um tom de voz ao mesmo tempo doce e incisivo.

Não esqueço mais da voz de Daiara, e da mensagem que ela nos trazia naquele momento. Bem no centro de São Paulo, centro também dessa cidade muito poluída, que corre demais, e, portanto, pouco respira, a artista pedia e fazia tudo parar. Uma parada necessária à reflexão.

Encontrei com Daiara também no Museu Nacional da República, em Brasília – local onde ela agora realiza essa nova exposição.

Em vez de apenas “entregar” um trabalho seu, pronto e acabado, Daiara permaneceu conosco. “Brasil futuro: as formas da democracia” foi uma exposição criada em 15 dias para saudar a urgência e a alegria de um novo governo que tomava posse no dia 1 de janeiro de 2023. Já Daiara nos acompanhou durante toda a montagem, revolucionando também o papel reservado ao artista, que, muitas vezes, participa das exposições, mas não participa da lógica e do processo que as constituem.

A presença de Daiara nos contaminou com a beleza de sua obra, a força de seu ativismo, a emoção do seu afeto. A pintura acabou virando um dos símbolos da exposição, com essa matriarca ameríndia dialogando de perto com as matriarcas do Candomblé, presentes na tela de Djanira da Motta e Silva, chamada “Orixás”.

Não contente, Daiara ainda fez uma bela moldura para o trabalho, com dizeres que retomavam as lutas e sabedorias milenares dos povos indígenas.

Por fim, a artista ainda iluminou toda a mostra com a projeção de seres encantados na famosa abóboda do Museu de Niemeyer, o qual, por sua vez, é um dos símbolos de Brasília e de uma modernidade que nunca disse respeito a todos, todas e todes nós.

Nesse ano de 2023 convidei Daiara para tomar parte de uma exposição no Museu do Supremo Tribunal Federal (STF), que tinha como objetivo retomar a barbárie do dia 8 de janeiro de 2023, mas com arte. Muita arte, sobretudo daqueles e daquelas que ficaram tanto tempo distantes desse circuito.

E lá estava ela, com sua obra/ritual. Sim, pois no trabalho de Daiara o ritual faz parte do processo de construção das pinturas, das esculturas, e das performances. Tudo junto e separado.

 

Quando o individual é coletivo e vice-versa

Todos esses casos têm o objetivo de destacar o aspecto de urgência do trabalho de Daiara. Uma arte na urgência diante de obras indígenas por tanto tempo silenciadas e apagadas — ausentes dos Museus e Instituições de arte. Uma arte na urgência frente à causa indígena, cujas terras e direitos têm sido constantemente solapados. Uma arte na urgência por conta dos temas, cores e encantamentos impressos nas formas estéticas fortes, originais e tremendamente belas.

Pois é assim o trabalho de Daiara: feito por muitas camadas de significados, de estéticas inesperadamente combinadas, de cores que fogem à paleta mais tradicional, de motivos pessoais e coletivos. Afinal, na obra de Daiara, os saberes coletivos se fazem individuais e vice-versa, inaugurando novas formas artísticas que não têm por que se limitar aos cada vez mais estritos, e assim chamados, cânones da história ocidental.

A exposição de Daiara é uma expressão da arte indígena na contemporaneidade, conforme definição de Naine Terena, fazendo uma arte sublimemente universal. Uma arte indígena universal, uma arte universal indígena.