MENU
2014
É possível, mas não agora
Por
Ana Maria Maia

As ondas sonoras guiam Regina Parra da praça da Sé, o marco zero de São Paulo, até um gueto não muito distante do centro, a rua Coimbra, na zona leste, onde encontra-se um contingente de imigrantes, principalmente bolivianos, que chegam à cidade em busca de trabalho. A travessia de pouco mais de três quilômetros explicita limites socioeconômicos, muito mais do que geográficos. O pequeno rádio que a artista leva à mão torna audível, embora ainda invisível, a presença de uma comunidade desamparada pela lei e estigmatizada por contratos precários na indústria têxtil dos bairros do Brás e do Bom Retiro.

À medida em que Regina se aproxima da praça, o aparelho alcança a frequência da Impactos Calientes, uma das inúmeras rádios pirata que existem na região, cuja programação é toda em espanhol, feita por bolivianos e para uma audiência latinoamericana. Uma salsa leva a artista ao seu destino final, a Coimbra, onde, entre barracas de saltenha e uma população de traços indígenas, torna-se ela mesma estrangeira e migrante.

O experimento, que resulta no vídeo 7.536 passos (por uma geografia da proximidade), articula alguns fatores imprescindíveis não só para este mas para os nove projetos apresentados nesta mostra individual da artista. Neles, o caminhar aparece como sinônimo de errância ou busca infinita, capaz de refutar marcos unilaterais de partida e chegada, além de desestabilizar convicções geradoras de preconceito e xenofobia. Outra estrutura recorrente é a escala individual, que leva a artista a demarcar pontos de vista, ora seus ora de outros, e tecer alianças com pessoas e pequenos grupos, como o Centro de Apoio ao Migrante (CAMI), refutando com isso a abordagem das grandes instituições, a imprensa e o estado, cujos debates e políticas são insuficientes para tratar do aumento das migrações para o Brasil nas última décadas.

A mostra É possível, mas não agora, ou empreendimentos artísticos semelhantes, naturalmente não preenchem a lacuna das iniciativas midiáticas e estatais. Tampouco ocupam o lugar dos movimentos sociais organizados. Podem, sim, contribuir com as agendas públicas sobre o tema gerando recursos de empoderamento, visibilidade e dissenso. Aproximar a arte da realidade corrente e orientá-la para o exercício da mediação social, no qual, para estipular interfaces com seu entorno e abrir caminho para intervenções efetivas, a produção artística precisa necessariamente redimensionar seus públicos, lugares e vocações; tornar-se estrangeira ante suas próprias tradições.

Para quem se volta uma mostra sobre os problemas da migração no Brasil? Para os assíduos frequentadores de exposições de arte, coniventes com o desejo de formular a massa crítica do presente e defender a justiça social? Para os temerários de uma perda de controle, para os silenciosos e destituídos de uma posição, para os imigrantes mesmos? Se consideradas as proporções de São Paulo, o Pivô, assim como a Sé, também é relativamente perto da Coimbra e da praça Kantuta, no Canindé, outro ponto de encontro dos imigrantes. No entanto, a conquista do seu espaço dedicado a atividades culturais e dos seus canais de fala e escuta por aqueles que não os detêm na sociedade requer pouco mais que um metrô à sua porta.

Tamanhos desafios, envoltos por urgências de semelhante grandeza, situam a postura da mostra na justa medida entre a utopia e a frustração. Nesse ínterim, ecoa o mantra “É possível, mas não agora”, repetido no conto de Kafka pelo porteiro do castelo ao homem que nele queria entrar, sem nunca obter sucesso. Deslocada do seu contexto e adotada como título, a frase às vezes pende para o terreno da possibilidade e outras vezes para o da negativa, que, por se anunciar em sua forma temporária (agora), instaura a espera e projeta o sonho para frente, para uma data indeterminada, porém ainda assim satisfatória. Interessa aqui assinalar esse mecanismo projetivo, que é comum aos fluxos de migração e também à arte.

No entanto, em paralelo a isso, interessa persistir no formulação de brechas que transformem a busca de possibilidades em obrigação do presente. Tornando esta exposição mirante pra cidade, laboratório de traduções, salão de jogos (literalmente, com a instalação Futebolín) e fórum de debate agendado para a tarde da sua abertura, a pergunta que se deve tentar responder, ao longo de dois meses de evento e com quem por aqui estiver, é: como é possível agora?