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2023
EN2023, uma exposição (quase) retrospectiva de Emmanuel Nassar
Por
Antonio Gonçalves Filho

Na 20ª Bienal de São Paulo, em 1989, o artista Emmanuel Nassar abriu sua exposição com uma obra chamada A Fachada, feita especialmente para a mostra internacional, uma pintura de grandes dimensões produzida com tinta industrial e chapas metálicas. Sobre um fundo amarelo, uma mulher com os braços abertos recebia os visitantes como num circo que, em seu interior, abrigava outras pinturas alusivas ao universo circense e às feiras de atrações populares. Era, como classificou Nassar, uma instalação efêmera, montagem que reverbera nesta atual exposição na Millan.

Nela, cada obra tem existência autônoma, mas a mostra foi igualmente concebida como uma instalação composta por 56 chapas metálicas, do chão ao teto, atingindo uma altura superior a três metros. Na segunda sala estão obras de dimensões menores, criando uma polaridade entre o que está dentro e o que está fora da galeria. A ambiguidade dessas peças já começa pelo jogo de aparências: embora estejam bastante próximas da tradição pictórica, tais obras são construídas com placas recicladas de propaganda de rua ou simplesmente com sucata.

Esse procedimento remete automaticamente à pintura pop norte-americana produzida nos anos 1960 por nomes como Robert Indiana (1928-2018), mas também a artistas do movimento inglês que a ela deu origem, em especial Derek Boshier, pioneiro da pop britânica que passou da pintura para a fotografia e dela novamente para a pintura. Em ambos os casos, a apropriação da linguagem publicitária e o cruzamento da cultura popular com a erudita levaram a um confronto com o mundo do consumo que marcou profundamente a geração de Nassar, artista paraense nascido há 74 anos.

A despeito das semelhanças com as ‘assemblages’ de Indiana ou os manifestos políticos de Boshier, a arte pop de Emmanuel Nassar é genuinamente brasileira, não apenas por recorrer a uma estética do precário (chapas riscadas ou corroídas) como por valorizar a cultura visual popular e regional (no caso, a amazônica), lembrando que ele recicla peças produzidas pelo artesanato local de Belém e cruza a fronteira entre dois mundos aparentemente inconciliáveis.

Se a sensibilidade pop americana ou inglesa era subversiva e desmontava nossa percepção do real, o pop brasileiro de Emmanuel Nassar se distancia delas por demolir todo o aparato da história da arte baseado na questão autoral. O pop americano, apesar de ter optado igualmente pela paródia (Lichtenstein, por exemplo) ou pela ressignificação dos signos patrióticos (caso de Jasper Johns), acabou cedendo aos mandamentos de Warhol, em especial ao primeiro: a arte não será mais sagrada e um artista bom será o que mais se assemelha a um homem de negócios.

Bem, Emmanuel Nassar contesta Warhol. Nunca assumiu essa persona de executivo pop. Há várias formas de usar essa linguagem: Claes Oldenburg buscou inspiração nos objetos cotidianos (de colheres a letreiros de rua) para fazer o que chamou de pop político; Rauschenberg, inventor da ‘combine painting’, fez da assemblage um meio de aproximar arte e experiência existencial, mostrando como a pintura estava próxima da questão social. Nassar pegou esse atalho. E transformou o caminho.

Essa migração do pop para o Hemisfério Sul trouxe com ela uma bagagem política logo absorvida por artistas brasileiros como o paraibano Antonio Dias (1944-2018), o carioca Rubens Gerchman (1942-2008) e o paulistano Claudio Tozzi (1944). Emmanuel Nassar faz parte dessa linhagem, mas seus ancestrais espirituais se apropriaram de outra forma da cultura de massa, em especial das histórias em quadrinhos.

Já as cores solares, equatoriais, de Nassar, foram empregadas em sucatas de subúrbio e sobras urbanas com parcimônia, sem tecer um discurso elegíaco ao precário, mas transformando o rudimentar em excepcional. Há, sim, ironia na obra de Emmanuel Nassar, mas não paródia. “Eu vejo o todo, mas moro no particular”, escreveu o artista a respeito de uma obra intitulada Céu azul, em 2010. Prova disso também é um trabalho de uma série mais recente, Trapioca box (2021), conjunto de achados que Nassar recolheu nas feiras livres, cujo título deve algo à ironia da junção de tapioca com a palavra inglesa “trap”, que significa armadilha em português. Uma trapaça do olhar, portanto.

Um paralelo pode explicar melhor essa “trapaça”, o diálogo com as cores fortes e a rigorosa geometrização do norte-americano Peter Halley (1953), também representado pela Millan. Muitas vezes identificado como um acólito de Baudrillard, pela “canabalização” da abstração modernista, Halley opera num registro que remete à apropriação de Nassar, com uma diferença: Halley, crítico à geometrização da vida moderna, replica em telas o espaço simulado de circuitos eletrônicos e videogames.

Nassar, desconfiado sobre os rumos da alta tecnologia, reforça que a presença do precário na vida urbana dos brasileiros leva a uma reconsideração sobre o papel afetivo que os materiais do passado têm na construção do futuro. Arquiteto de formação, o artista brasileiro formulou uma relação entre aquilo que via nos livros estrangeiros e sua realidade periférica, entre a alta tecnologia e o construído abaixo do Equador. Como uma espécie de mediador entre os dois mundos, ele cruza essa fronteira na exposição ao separar o que é industrializado (chapas metálicas de zinco ou alumínio) do artesanal (peças de madeira, telas, peneiras), na segunda sala da exposição.

A máquina disfuncional do nada admirável mundo novo do consumo e da alta tecnologia vem sendo investigada por Nassar há mais de 40 anos, desde séries como Recepcor (1980/81), pinturas sobre madeira e chapas com cores fortes e uma geometria com referências populares exploradas posteriormente em obras como Arraial (1984), um pórtico circense muito próximo da obra apresentada na Bienal de 1989 (A Fachada) e também do portal que separa as duas salas na atual exposição.

Nassar observa que a mostra tem a natureza de uma retrospectiva. "Para um artista com mais de 70, toda mostra é retrospectiva", justifica. Há trabalhos que se desdobram em outros. Séries como a das bandeiras redesenhadas nos anos 1990 e que hoje fazem parte do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo são revisitadas, mas seguindo o mesmo princípio estético avesso à apropriação nacionalista do signo. Vale lembrar que, em 2011, ele desconstruiu uma bandeira brasileira alterando suas cores para um monocromático cinza, com uma única estrela acima da faixa branca, a que oficialmente representa o Pará, e com suas iniciais, "EN", no lugar do lema positivista "Ordem e Progresso". A busca de uma identidade nacional nada tem a ver com nacionalismo, parece dizer Nassar, que escapa de um passado idealizado purgando seus excessos. Tudo nele tende ao sintético, ao essencial. E é a síntese de uma carreira que vemos nesta exposição.