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2013
Ensaio: Imagem, tempo e pensamento: José Damasceno
Por
Aurora García

Em tempos como os atuais, dominados pela superpro- dução de imagens que corresponde ao ritmo desen- freado das ondas eletromagnéticas que inundam nosso planeta, a imagem produzida pela arte contem- porânea ainda pode oferecer uma resistência aos caóticos sistemas de representação da sociedade globa- lizada. Isso, entretanto, não é uma tarefa fácil, e são poucos os que vão contra a corrente dominante, assumindo assim um papel diferenciador com relação àquilo que se destina ao consumo imediato ou à manipulação informativa. Com efeito, a enxurrada contínua de imagens que recebemos, vindas de todos os lados, provoca uma espécie de estado de adormeci- mento, que dificulta tanto o exercício da reflexão como a possibilidade de beneficiar-se de um tipo de represen- tação que em outros momentos da história enxergava o mundo como um enigma. Hoje, a Terra ficou pequena e parece que o enigma se desfez, ou, ao menos, está dissolvido em meio a uma claridade ofuscante que, paradoxalmente, contém uma escuridão maior.

Concebidas na urgência da informação, muitas das imagens que circulam por todo lado na sociedade globalizada pretendem ser um reflexo direto do universo das coisas. Contudo, as correlações que elas estabelecem com o entorno vital têm se tornado cada vez mais planas, menos verídicas, e assim acabam por reduzir a complexidade do real por alterá-la a partir de pontos de vista interesseiros ou buscando efeitos imediatos. A realidade, tal como nos é transmitida com frequência hoje, está perdendo a tensão da energia que existe além do meramente evidente e comodamente acessível, na medida em que se opta por manter-se no terreno da literalidade e da leitura fácil. Isso talvez ocorra porque o complexo imaginário do plano simbólico demanda mais que um simples olhar, e requer também uma capacidade para estabelecer relações que ressaltem a trama inseparável que sustenta tudo aquilo que povoa a existência, o que inclui tanto o conhecido como o desconhecido. A realidade se apresenta para nós cada vez mais desagregada, cada vez mais rebaixada, se comparada à riqueza de sua verdadeira condição.

Tais questões repercutem no clima em que se desen- volve a produção artística e servem para considerarmos a obra de José Damasceno, exemplo de boa abordagem ante a futilidade de tantas representações visuais que diminuem as possibilidades do real e do imaginário.

Damasceno é o tipo de artista que concebe seu trabalho como um meio de investigar o ainda desconhecido, o enigma que envolve as coisas. Está interessado em esticar o fio do particular até adentrar o terreno do geral onde tudo se conecta, adotando uma perspectiva mais ampla no que diz respeito a alguns hábitos pouco enriquecedores da percepção, extraindo assim novas possibilidades daquilo que o objeto de conhecimento oferece. Desse modo, o artista atravessa os caminhos da lógica perceptiva convencional e produz uma poética que une pensamento e imaginação à liberdade. Sua busca é a ampliação não apenas da esfera sensorial, mas também do próprio âmbito em que se desenvolvem os conceitos e as ideias.

Em sua obra, Damasceno investiga a natureza da matéria e dos objetos que maneja ou irá manejar. Ele questiona as correspondências e divergências que podem existir entre eles, dando lugar a representações e imagens inusitadas que se caracterizam por sua abertura dinâmica e por transmitirem uma energia que pode se irradiar para o espectador atento, de quem se pede igualmente uma disposição receptiva, tanto na esfera mental como na sensitiva. Goethe disse com razão em Máximas e reflexões (1833) que “a arte (o belo) é uma manifestação das leis ocultas da natureza, as quais, de outro modo, jamais se manifestariam”.1 Damasceno não se deixa seduzir por imagens que navegam pelo óbvio, tão frequentes no panorama atual, como se fossem fragmentos de algo impossível de ser recomposto porque partem de uma ideia que nunca levou em conta as possíveis relações com o contexto que lhes dá sua razão de ser. Antes, em seu trabalho com a escultura, o artista se valia das partes, dos múltiplos e variados objetos que a compõem para colocá-los em contato entre si, física e conceitualmente, recorrendo à noção de unidade na diversidade, como em uma espécie de microcosmo onde tudo acaba se encadeando e onde o enigma também possui um papel de destaque. Afinal, embora a obra de Damasceno busque o significado, é consciente de que em torno do mesmo existe uma ampla esfera de sombras que resistem à interpretação. Jung disse:

A rigor, nada tem significado, pois quando não existia homem pensante algum não havia quem pudesse interpretar os fenômenos. Apenas o que não é compreensível possui algum significado. O homem acordou em um mundo que não se compreende, e por isso tenta interpretá-lo.2

E nessa busca de significado, o artista está aberto tanto para o encontro ao acaso como para aquilo que lhe é sugerido pela contemplação. Inclusive, não é raro que a ideia norteadora do trabalho, sempre aberta, vá aos poucos se conformando à raiz de um achado, de um objeto concreto que pede para ser apropriado sem que se saiba de antemão quais fios de sentido ele emprestará para a obra à qual dará lugar. Damasceno não se apressa, sabe que o processo de realização pode ser lento e, por isso, não declara uma guerra contra o tempo, o que desbarataria o resultado de seu trabalho. Seu objetivo consiste em construir uma imagem em busca de um sentido sempre em fuga, ou em permitir que se ouça – e inclusive que se amplie – os ecos de um objeto, ou de um desenho.

Para além da mera visualidade para consumo imediato que costumamos encontrar na vitrine da arte contemporânea, Damasceno enfatiza a necessidade de uma aproximação mais detida com o objeto artístico, já que, para ele, a percepção, como argumentou Rudolf Arnheim, é um fenômeno estreitamente ligado à cognição. Nas palavras do filósofo: “Não existe uma grande diferença entre o que acontece quando uma pessoa contempla diretamente o mundo e quando senta com os olhos fechados e pensa.”3 Do mesmo modo, quando alguém contempla uma verdadeira obra de arte, não é possível estabelecer uma disso- ciação entre o exercício dos sentidos – o âmbito sensitivo – e a atividade do pensamento – o âmbito mental ou intelectual –, por mais que, neste mundo acelerado, ocorra com frequência que a recepção dos conteúdos artísticos seja deficitária e, com isso, que a faculdade perceptiva acabe abortada, interrompida em suas numerosas possibilidades de ampliar o entendi- mento. Pois a percepção adequada requer calma e atenção, um processo cognitivo que é incompatível com a atitude passiva e com as interferências causadas por distrações de todo gênero, comuns na sociedade da tecnologia de ponta.

Vejamos agora um dos últimos trabalhos de Damasceno, cujo título é Sobre o objeto de 8o grau (2013; pp. 170-71) em uma referência à Imagen de séptimo grado (Imagem de sétimo grau) descrita por Macedonio Fernández, autor argentino cuja atitude de perple- xidade ante certos fenômenos e empenho em inter- pretá-los exerceu forte atração em Jorge Luis Borges. Em seu texto, Fernández parte da imagem de um rosto feminino refletido sete vezes em pontos distintos do tempo e do espaço, adotando certas variações em seu percurso irregular, mas permanecendo intacta e reconhecível até o fim. O espelho possui um papel primordial nesse processo, assim como na obra de Damasceno a que estamos nos referindo, composta de objetos brilhantes e um espelho, todos feitos de obsidiana. Aqui, tudo começa com um sítio arqueo- lógico pré-colombiano, Guachimontones, próximo à cidade de Guadalajara, no México. Durante uma visita ao local em 2011, o artista encontrou um objeto de artesanato que chamou sua atenção: uma coruja feita em obsidiana, material vulcânico usado séculos atrás naquela região para fazer armas cortantes e diversas outras peças, entre elas espelhos, por conta da capacidade reflexiva da pedra vítrea. Um desses espelhos, que datam de antes da conquista espanhola, se encontra hoje no British Museum e pertenceu, já no século XVI, a John Dee, matemático, astrólogo e amante do ocultismo, que usava o espelho para adivinhar o futuro. Na cultura asteca, o espelho de obsidiana, assim como seu nome, era associado a Tezcatlipoca, senhor todo-poderoso a quem eram oferecidos rituais.

Apontamos esses aspectos para assinalar a viagem física e imaginária que Damasceno levará a cabo através da geografia e do tempo, a partir de seu encontro com um objeto de obsidiana. Após essa descoberta, propôs- -se a desenvolver algo em sintonia com a ideia que havia alimentado seus Estudos paragráficos (2010;
pp. 150-51), a grande exposição realizada na Galeria Distrito 4, em Madri, 2010. No entanto, não se apressou na realização do projeto, que precisava amadurecer em seu próprio ritmo. Mais tarde, em outra viagem a Guadalajara, estava em uma loja e encontrou um lápis, também de obsidiana, e foi assim encontrando sucessi- vamente outras coisas que se encadeariam para compor uma ambígua representação mental em que o acaso se torna aliado da ordem estabelecida pela geometria, e, partindo do parcial e do fragmentário, tenta recompor, à margem de qualquer literalidade, a noção de uma unidade perdida. O estímulo que final- mente o levou a conectar os fragmentos encontrados aos poucos foi o encontro com um menino que vendia na rua um quebra-cabeça tridimensional que formava um cubo, estendido no chão sobre papel de jornal. A experiência desse momento de “revelação” não parece ser muito distinta daquela de Giorgio de Chirico – artista já citado por Damasceno – com relação à sua série Piazza d’Italia: sua percepção de que, sentado na Piazza Santa Croce, em Florença, “observava essas coisas pela primeira vez”4. A diferença, entretanto, é que, embora de Chirico foque no inexplicável, no estranho e no enigmático, Damasceno não descarta o uso da lógica e do sentido, mas os combina igualmente com a imagi- nação e com a capacidade intuitiva. O grande pintor italiano era atraído pelo mistério que há em tudo que existe e, ao adentrar o mesmo, unia todos os tempos, apelando à memória. “Às vezes parto de viagem em direção às profundezas da noite escura dos tempos e das castas. Assim, compareço às festas que celebram o retorno do filho pródigo”, escreveu.5 Se Damasceno embarcasse nessa viagem, logo trataria de colocar alguma ordem naquela experiência dionisíaca que continha altos graus de devaneio. Sobre o objeto de 8o grau atua no fluxo existente entre o visível e o invisível. O visível tem aqui duas partes necessariamente complementares. Três, melhor dizendo, se considerarmos o espelho pendurado na parede. O artista determinou que todos os objetos que compõem as partes fossem feitos em obsidiana e em uma escala dada. No chão, eles estão dispostos sobre duas mantas de feltro, claras e amplas, estendidas lado a lado com uma pequena distância entre si. As coisas mostradas sobre elas provêm desses encontros e viagens que mencionamos antes. Numa das mantas estão dispostas formas tridimensionais de natureza diversa, cuja relação de significado é difícil de se estabe- lecer, sobretudo se desconhecemos a narrativa da história que levou Damasceno até esse ponto de inter- venção. No outro feltro estendem-se, em uma escala semelhante, os pedaços do quebra-cabeça, feito também em obsidiana, em uma livre interpretação daquele de plástico que o menino vendia em uma rua mexicana. O quebra-cabeça é formado por oito peças – conforme o título da obra – de três partes cada. Claramente o artista percebeu a necessidade de canalizar esses objetos desiguais de obsidiana que foram aparecendo pouco a pouco por uma via em que o pensamento recorre à ordenação geométrica, dada aqui pelas peças de um quebra-cabeça que sugerem a possibilidade de construção, de alcançar uma unidade não gratuita entre toda a diversidade. Não esqueçamos os estudos arquitetônicos do artista, mas pensemos também na tradição moderna da filosofia europeia, em Nietzsche, a quem devemos considerações como esta: “Percebo que todas as paisagens que me agradam de maneira persistente contêm, em sua complexidade, uma simples figura de linhas geométricas. Sem tal substrato matemático, região nenhuma conseguirá ser um deleite artístico para o olhar. E talvez essa regra possa ser aplicada simbolicamente para o homem.”6

Sobre o objeto de 8o grau procura a unidade temporal – e espacial –, em um lugar em que presente, passado e futuro seriam, segundo Maurice Blanchot, um só, “não fosse justamente porque a unidade, ao se desfazer, modificou também as distinções, entregando- -as a um tipo mais conciso de diferença”.7 Apesar do declínio do unitário nessa atmosfera desagregada que hoje nos envolve, a obra de que tratamos consegue fundir o passado – que nos guia através da história e da memória – com o presente, na busca pelo sentido de ambos, o que por sua vez supõe o alicerce do futuro. Tudo isso acontece a partir de um artesanato encon- trado por acaso, um pequeno objeto que para muitos não teria a menor relevância. A imagem plural e indefinida que Damasceno constrói aponta, no entanto, para uma unidade conceitual, em um percurso em que o mais importante é aquilo que é sugerido e indicado. Não se pode deixar de lado o enigma; ele está lá, ocupando um lugar proeminente no campo semântico. “Em vez de buscar uma transparência absoluta, é preciso perguntar-se sobre os aspectos positivos de percorrer os caminhos labirínticos da experiência e do pensamento”,8 afirmou Mario Perniola, e também enfatiza que a essência da realidade é enigmática. Por isso, a arte centrada no enigma se aproxima mais da densidade do real do que a arte confortavelmente baseada numa visão superficial e enganosa.

Também precisamos mencionar algumas fontes da arte brasileira nas quais Damasceno bebeu e sobre as quais já se escreveu em outros comentários sobre sua obra. Nomes como Hélio Oiticica, um dos protagonistas da exposição Nova Objetividade Brasileira, realizada em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, cuja repercussão ainda se vê hoje em parte das propostas artísticas realizadas no país. Os Metaesquemas, grades irregulares de quadrados e retângulos contra um fundo pálido que Oiticica começou a desenvolver em 1957, quando tinha apenas vinte anos de idade, remetem-nos de algum modo aos Organogramas de Damasceno, embora esse último costume vá além da bidimensiona- lidade – da qual o próprio Hélio sairia logo depois –, trabalhando também o objeto e as instalações. A propósito dos Metaesquemas, Oiticica declararia, em 1968: “Considero esse trabalho importante hoje, e para mim naquela época foi desconcertante por causa da ideia de ‘diluição estrutural’, para além do espaço meramente pictórico.”9 Nessa linha, a ideia de modelar transformações no espaço e no tempo a partir de estru- turas regulares nas quais se provoca um discurso livre será um leitmotiv de toda a obra de Damasceno. Ademais, o artista herdou outra herança dos artistas neoconcretos desde os anos 1960: seu empenho por aproximar a arte da vida, da história e da ciência, sem abandonar poéticas próprias que haviam rompido com a circunscrição construtivista. Isso permitiu que suas ideias se humanizassem, respirassem e se expandissem, mas sem que se dissolvessem em um mero caos.

Independente de seus vínculos naturais com parte do contexto cultural em seu país, Damasceno, com seu olhar abrangente e suas inquietações formativas, ultra- passa fronteiras e épocas. Em certos momentos, nos parece que sua obra poderia se conectar, embora sutil- mente, com o legado de figuras como o austríaco Rudolf Steiner e sua antroposofia, em especial no que se refere à geometria entendida como reflexo da ordenação do pensamento e como transmissora de uma energia capaz de repercutir no material. Por outro lado, também lhe interessam as relações do pensa- mento hermético, que tem forte presença nos escritos do filósofo.

Nesse sentido, voltemos um instante para Sobre o objeto de 8o grau, que aponta em boa medida para o oculto, para um hermetismo de longa tradição que já demonstrou muitas vezes no curso da história sua compatibilidade com a ciência. Enfatizando essa ideia de enigma nesse trabalho está o espelho de obsidiana, um instrumento que era usado em rituais astecas. Esse ponto negro e brilhante na parede da galeria está envolto, em todos os níveis, por uma aura enigmática: desde a matéria empregada, que sofreu transfor- mações em seu rápido esfriamento ao sair do coração do vulcão, até a variedade de objetos formados com ela, os quais, com exceção das peças do quebra-cabeça, aparecem como fragmentos soltos de uma totalidade utópica, impossível de ser recomposta, salvo através da poética da arte. Falamos em termos simbólicos porque é nesse terreno que a obra se situa. A imagem plural trazida à tona aqui reverbera pelo tempo e pelo espaço, conforme a formulação de Macedonio Fernández, só que a de Damasceno, em parte, não tem traços precisos, embora possua, qual metáfora do exercício mental ordenado, a geometria do quebra- cabeça. Ela é feita de restos desiguais, capazes de trazer à memória um interesse por histórias já alteradas cuja ressonância chega até nós ainda hoje, pois, segundo o artista, “uma imagem é uma resso- nância que surge na confluência de muitas instâncias nas quais nosso espírito e nossa visão constroem espaços”.10 É uma imagem em que o visível aponta para o invisível e o presente para o ausente, em uma dinâmica que foge da fixidez e da determinação.

O importante é que o pensamento e os sentidos sejam ativados, entrando inclusive no território do inapreensível, ou de algo próximo do que entendemos por ficção. Borges afirmava que “o escritor que escreve uma fábula – por mais fantástica que seja – precisa acreditar, naquele momento, na realidade da fábula”.11
O pensamento também se ilumina com a ficção, que é uma espécie de segundo tipo de realidade não condi- cionada. Entretanto, para que essa chama brilhe, é neces- sário que o autor a torne viva em sua mente e em sua carne, como Damasceno faz em sua obra. Não há imagem que valha a pena sem imaginação e, falando concretamente da imagem na arte, o essencial é que ela abra uma fresta em meio aos códigos secretos da realidade. Outros trabalhos do artista também
apontam nessa direção, como Errante (2010; p.148), instalado em Madri como parte do conjunto dos Estudos paragráficos. Anterior a Sobre o objeto de 8o grau, essa obra, constituída por duas figuras de bronze
– um jóquei montado num cavalo de corrida e um cachorro – compradas em antiquários em diferentes momentos, surpreende pelo modo como cria tensão e enigma no espaço, lançando mão de uma economia de meios. As antigas esculturazinhas de gênero e autor anônimos que serviram para construir essa nova imagem também tiveram que esperar para enfim encontrarem-se pela primeira vez, e em um contexto impensável: no espaço desabitado de uma parede branca na qual o artista pintou de maneira tênue, quase imperceptível, um círculo cinza de grande dimensão, interrompido pelos limites da própria parede. Apesar da evidente coerência no diálogo visual entre o jóquei montado no cavalo de corrida, que está olhando para trás, e o cachorro sentado, que parece observá-lo, o trabalho contém também uma fábula cujo desfecho não existe, porque o que prevalece é a indefinição. Sua posição vertical, ascendente, aponta para um âmbito vazio, marcado apenas pela geometria falha do círculo que, por sua vez, sugere uma expansão em todos os sentidos, inclusive em relação aos conceitos, à ideia que continua em ação. Os objetos utilizados, familiares ao olhar, estão ali para “dar o que pensar”, desafiando nossa convicção imediata de que o que estamos vendo é apenas o que estamos vendo. Como em outras obras de sua autoria, Damasceno afirma enfaticamente que a realidade contém muitas outras realidades possíveis em suas inumeráveis camadas. “Interessa-me sobretudo pensar a natureza das relações entre as coisas, sem que qualquer a priori se sobreponha a elas e as invalide”, confessou.12

É frequente o uso que o artista faz de objetos preexis- tentes aos quais confere nova vida e novas relações, que abrem ainda mais possibilidades no plano semântico. Damasceno compõe imagens a partir de outras que seleciona e desvia de seu caminho anterior, para então introduzi-las em contextos metafóricos que podem,

por vezes, conter certa dose de ironia. Referimo-nos agora a Circuito integrado (2010; pp.154-56), instalação composta por uma verdadeira mesa de bilhar e 22 pedras semipreciosas na forma de esferas de diferentes cores e medidas. Nesse caso, rompe-se com a lógica desse jogo de precisão através da alteração do tamanho e da matéria de suas bolas. A mesa de madeira forrada de feltro verde se torna um espaço de conotações ilusórias, com base na variedade de dimensões e quali- dades materiais da esfera, figura geométrica elementar carregada de simbolismo. A escolha de pedras semipre- ciosas, empregadas também em outros trabalhos do escultor, tem sua razão de ser em um país como o Brasil, rico em jazidas desses minerais. Esferas polidas, cujas propriedades e cores vêm das entranhas da terra. Goethe demonstrou seu interesse por pedras preciosas, e entre os artistas românticos alemães houve especia- listas em mineralogia. É o caso de Carl Gustav Carus, amigo do naturalista Alexander von Humboldt e homem de vasto conhecimento científico, que afirmaria que para pintar adequadamente uma montanha, valorizando seu aspecto exterior, é impor- tante conhecer sua composição interna. Apesar da distância entre esses exemplos culturais e das inquie- tações que movem Damasceno a desenvolver sua obra, há um fundamento na escolha dos materiais; não é algo gratuito. A energia e a beleza dessas pedras, além do enigma que as envolve durante seu longo período de formação e nas transformações pelas quais elas foram passando até se tornarem o que são, fazem delas algo vivo, testemunhas de incontáveis processos ocorridos na natureza, uma natureza em parte violentada pela sede exploratória dos muitos interesses econômicos de hoje. O bilhar impossível de Circuito integrado se torna uma imagem da arte que substituiu a utilidade por uma espécie de paisagem de repercussão mental, de natureza imaginária, articulada no dinamismo e nas brasas de um fogo originado inicialmente na ideia que deu lugar à obra. Nas palavras de Georges Didi-Huberman, a imagem “é um rastro, uma pegada, um traço visual do tempo que ela quis tocar, mas também de outros tempos complementares – fatalmente anacrônicos, hetero- gêneos entre si – que, como arte da memória, ela não pode deixar de aglutinar. São cinzas mais ou menos quentes, misturadas de vários braseiros”.13

Damasceno não trabalha apenas elaborando imagens tridimensionais com objetos criados por ele e outros preexistentes; sobretudo em seus Organogramas, ele também lança mão da linguagem, de palavras que se alternam, se repetem e até se entrecruzam, em um fluxo que tende ao incessante. A esse respeito, mencio- naremos o Organograma especial que, em 2008, foi instalado na antiga fachada do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri (pp. 126-27). Um trabalho de memória temporal e espacial: numerosas caixas com luzes vermelhas foram dispostas pelas janelas do edifício e programadas por computador para serem ligadas e desligadas. As luzes compunham as palavras ayer, hoy, mañana (ontem, hoje, amanhã), constantes em outras obras do artista. O anoitecer acentuava a visibilidade da instalação, assim como os neons vizinhos do Hotel Mediodía. Mas as luzes se acendiam e apagavam de modo aleatório e sempre distinto, e não em uma sequência temporal. Esse fluxo caprichoso e desconcertante aborda o conceito do tempo, que, a partir da esfera do inconsciente e de uma visão poética, surge amiúde assim, alterado. Para Fernando Pessoa, o tempo não é nada além de um engano.

Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.14

Em todo caso, o tempo é entendido antes de tudo como uma medida convencional que nos situa na história e ao mesmo tempo regula nossa vida e nossos atos, uma medida cada vez mais alterada, deslocada no espaço acelerado e cheio de interferências que habitamos. Se, como afirmava Marc Augé, “a supermodernidade produz não lugares, ou seja, espaços que não são lugares antropológicos”15 é porque cada dia torna-se mais difícil para o cidadão que os povoa estabelecer neles raízes. Nesses lugares onde tudo se tornou despersonalizado, provisório e fugaz, o tempo permanece em união estreita com o espaço. Há, para além da subjetividade da percepção poética que põe em dúvida a medida temporal, outras formas de aproximação, reais e objetivas, ao grande Organograma, testemunha também desse caos circundante em que nos movemos.

Trouxemos aqui diversos exemplos daquilo a que o artista tem se proposto nos últimos anos, certos de que há muitos outros que não foram mencionados, reali- zados em duas ou três dimensões, com os quais também seria possível estabelecer relações pertinentes, já que a obra de Damasceno se desenvolve como um fio contínuo que vai configurando tecidos que dialogam entre si. A ideia que os sustenta amplia os nomes das coisas e dos espaços e suas capacidades para gerar reflexão, ainda que para tanto tenha de recorrer ao nonsense, fugindo da visão convencional. A abordagem de Damasceno é uma maneira válida de se distanciar da literalidade ou dos desvios semanticamente redutores e interesseiros de tantas imagens de nossa época, e ao mesmo tempo um modo de levar a arte a uma polis- semia que aponta para aspectos gerais daquilo que vemos e, por extensão, daquilo que não vemos.

Traduzido para o português por Miguel del Castillo

 

 

Notas

1  Johann Wolfgang von Goethe, Maxims and Reflections, Penguin Classics, Londres, 1999.

2  CG Jung, Arquetipos e inconsciente colectivo, Paidós, Barcelona, 2003, p.38.

3  Rudolf Arnheim, El pensamiento visual, EUDEBA, Buenos Aires, 1985, p.13.

4  Giorgio de Chirico, 'Mediations of a Painter', In. Herschel Chipp (org.), Theories of Modern Art, University of California Press, Berkeley, CA, 168, p.398.

5  De Chirico, De Chirico par de Chirico, Jacques Damase ed., Paris, 1978, p.40.

6  Friedrich Nietzsche, El viajero y su sombra, EDAF, Madri, 1985, p.199.

7 Maurice Blanchot, El paso (no) más allá, Paidós, Barcelona, 1994, p.45.
8

8  Mario Perniola, Enigmas. Egipcio, barroco y neobarroco en la sociedad y en el arte, Cendeac, Murcia, 2005, p.19.
9

9  Guy Brett, Hélio Oiticica, Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 1992, p.30.

10 José Damasceno, Tópicos Topo-Ópticos, Seminários Internacionais Museu Vale, Vitória, 2009.

11 Jorge Luis Borges and Osvaldo Ferrari, En diálogo/I, Siglo XXI, Mexico City, 2005, p.40.

12 Soledad Liaño and Rafael García, ’Conversaciones con José Damasceno’, In. José Damasceno. Coordenadas y Apariciones, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri, 2008, p.49.

13 Georges Didi-Huberman, ’Cuando las imágenes tocan lo real’, In. Georges Didi-Huberman, Clément Chéroux and Javir Arnaldo, Cuando las imágenes tocan lo real, Círculo de Bellas Artes, Madri, 2013, p.35.

14 Fernando Pessoa, Libro del desasosiego, Seix Barral, Barcelona, 1984, p.390.

15 Marc Augé, Non-places. Introduction to an anthropology of supermodernity, Verso, Londres, 1995, p.78.