Raphael Fonseca: Como você se sente fazendo pintura nesse momento da história? A nossa geração muitas vezes tem sido associada a um outro “retorno à pintura”; recentemente vi uma edição da revista alemã Texte zur Kunst dedicada à pintura figurativa...
Maya Weishof: Por mais que eu esteja pensando em trabalhos instalativos, que vão para o espaço, eles vêm da perspectiva da pintura. Tudo que eu olho está conectado por esse espectro da pintura. A pintura está nas primeiras imagens e eu me interesso muito por essa ideia, das imagens originárias. Isso vem desde a origem da humanidade como imagens que inauguram na nossa mente séculos, guerras, anunciações, momentos… Eu acho que tenho essas imagens marcadas em mim. A minha pintura tem muito desse lugar da anunciação; talvez às vezes seja por isso que eu penso na grande escala, que me encanta muito, que é incrível. Então, se há um certo “recorte do recorte” – ou seja, esse da pintura figurativa – sim, não vejo problemas em ver meu trabalho relacionado a ele e muito me interessa.
RF: Sinto que teus trabalhos muitas vezes têm fantasmas da história da arte com os quais você está conversando. Como você vê a relação da sua prática, de maneira ampla, com o tempo?
MW: Tenho um super fascínio por imagens antigas no geral, mas parece que sempre me encanto quando tenho uma relação de espelho com elas, quando eu consigo trazer para o agora. Coleciono muitas imagens e muitas vezes faço um processo de não pesquisar exatamente o que é para não me contaminar com aquilo; então bato o olho num desenho de um corpo incrível e procuro, num primeiro momento, não entrar historicamente de uma forma tão profunda naquela imagem, e sim, “roubar aquele desenho”. Eu faço muito isso: às vezes uma pintura tem um desenho que veio de um mosaico romano e junto um corpo que “peguei” do Rodin - peguei entre aspas porque não sei copiar tão bem. Acho que esse é um ganho que tenho no trabalho porque não sei fazer tão bem, então tem uma tradução meio “xoxa”, sabe? Eu gosto muito disso também. Claro que às vezes é meio frustrante, não consigo reproduzir esse desenho, mas aí acontece alguma coisa que fica meio esquisita e aí “boom”, beleza, a imagem rolou. Gosto dessa entrada na pintura primeiro pelo desenho e depois vou linkando uma coisa com a outra.
RF: Na tua pesquisa há um certo horror ao vazio... Quando olhamos para tuas pinturas e desenhos, sempre está acontecendo alguma coisa em um canto. Pode falar um pouco sobre isso?
MW: É realmente um pouco louco, porque a quantidade de vezes que eu entro para fazer uma pintura e penso “quero que essa pintura seja bem mais vazia ou com menos coisas” é grande. É uma coisa um pouco descontrolada; acho que esse preenchimento vem no lugar da correção. É uma correção meio obsessiva, de preencher no intuito de transformar as coisas. Parece que preciso que o olho caminhe dentro da pintura muitas vezes... Ser meio que uma armadilha para o olhar e é assim que vou fazendo porque eu vou pintando enquanto que o meu olho vai batendo, e ah!, aqui precisa ficar mais, até que aquilo virar uma coisa emaranhada.
RF: Quais relações você vê entre as tuas imagens e a noção de prazer e erotismo?
MW: Essa coisa do olho ficar passando por dentro da imagem, acho que há uma relação de prazer com isso. E quando penso no meu estado – eu, Maya, físico, psicológico e corporal - enquanto estou fazendo os trabalhos, é parecido com momentos em que tenho prazeres diversos. É um estado de euforia, um pouquinho de ansiedade, de me apaixonar pela imagem... Tem algo de muito sedutor também. Na exposição que eu fiz no ano passado, Espelho espanto, essa coisa ficou reverberando depois... essa relação narcísica com o trabalho, daquilo estar acima de tudo, de ser algo feito diretamente por você. Eu acho que o artista experimenta uma coisa que é muito sedutora, que é você fazer algo com essa coisa da mão e ser diretamente seu... Ao menos na minha prática isso é bem importante. Acho que tem uma ligação com uma coisa meio brega de se apaixonar, mas narcisicamente. O prazer é muito narcísico também porque a gente se vê muito de perto quando pinta.
RF: Já que você está falando sobre prazer e narcisismo, queria que você falasse sobre a importância da beleza para o teu trabalho.
MW: Acho que, às vezes, minha entrada pela cor traz muito desse interesse pelo belo porque, de novo, as coisas muitas vezes não são como eu quero... Os personagens e as pessoas que aparecem na pintura são caricatas, figuras meio estranhas. Acho que isso é engraçado porque quando você faz um recorte, pega alguém, não são pessoas extremamente belas dentro desse padrão de belo da pintura ocidental, mas, ao mesmo tempo, acho que tem uma atmosfera de dor e danação na coisa e isso para mim é onde também vejo beleza... Nunca gostei de uma pintura muito açucarada, para mim isso não é tão bonito, sabe? A beleza é uma coisa que eu penso, mas ela sempre vem um pouco contaminada por uma coisa meio amarga, meio estranha, meio engraçada. Tenho pensado nisso bastante, no humor no trabalho, então essas pessoas são meio estranhas, meio espantadas, meio nojentas.
RF: Qual a importância da cor na sua pesquisa e como é o seu processo de escolha? Você projeta, desenha e pensa essas relações anteriormente ou tudo acontece ali com os tubos na sua frente?
MW: Essa cena que você descreveu com os tubos na minha frente é exatamente como acontece; não faço estudos de cor, às vezes faço um desenho, mas de cor não. A cor é muito intuitiva no trabalho e tem vezes que ela entra nesse lugar do erro, mas é muito interessante porque a cor também me coloca nesse estado de correção dentro do trabalho. Às vezes eu entro com uma cor completamente equivocada para poder corrigir... daí entro com cores estranhas que eu sei que depois vão me obrigar a mexer em tudo. Sou meio kamikaze com cor porque não estou escolhendo a partir de um magenta que vai ser a sombra de um amarelo, por exemplo. Muitas situações que me interessam na pintura começam com essas “cores erradas”... Mas há algo da intuição e também o ateliê cercado de imagens na parede. São muitos papéis, algumas imagens são pinturas, outras poucas fotografias, mas gosto de olhar para um canto do meu ateliê onde tem uns livros e é impressionante como ali tem umas combinações de cores muito interessantes. Eu gosto de ter sempre algumas frutas perto e às vezes eu olho e ah! Olho o tom, parece que tem uma coisa que sempre está ao acaso acontecendo assim junto... Quando tudo é muito premeditado, parece que me desinteresso. É uma combinação de desordem com casualidade.
RF: Chama a atenção o fato de você não ser uma artista interessada em ficar apenas em telas com formatos pré-definidos. Há trabalhos onde você repensa até mesmo a superfície dura da tela e a costura. Algo bem artesanal te interessa, assim como as pinturas murais... Queria que você contasse um pouco desse seu interesse de sair do formato mais tradicional e como é a sua relação com o espaço.
MW: Agora eu estou super nesse momento cortinas e portais, nessa ideia simples de pinturas para passar no meio ou para passar do lado, ou poder estar junto. Ao mesmo tempo em que eu faço uma pintura que às vezes é uma cortina, eu vou lá para o chassi e faço uma pintura médio formato. Parece que preciso ter as duas coisas, mas acho que tem algo que me levou a pensar na pintura mole, a pintura para o espaço, recortar, fazer... Primeiro por uma questão prática de eu quase nunca ter o espaço que queria para os trabalhos, então eu sempre precisei estar com o rolo da tela e não com o chassi grande. Eu já a via mais desmembrada e sempre gostei de pintar na parede e não no chassi; tem algo de eu fazer força na hora de pintar e quando está no chassi tem essa coisa meio mole do recuo até a parede. Então eu gosto de fazer as coisas na parede direto. Agora estou pensando em construir espaços com pinturas. Estou terminando minha primeira cortina e tenho pensado nesses portais.
RF: Para terminar, gostaria de te perguntar sobre a possibilidade de olhar para o seu trabalho pela perspectiva do embate com o nosso dia a dia e com fatos históricos recentes. Qual é esse “caldo”, digamos assim, de cotidiano, de banalidade, que tua pesquisa tem?
MW: Acho que o trabalho vai ser, de certa forma, uma desova do nosso próprio tempo. Só consigo fazer uma leitura sobre isso, sobre certa relação do grotesco que estamos vivendo com as pinturas, depois da imagem já feita. Isso nunca vem como intenção na pintura, mas não é muito espanto na hora que eu olho para trás e sim, tem a ver com o momento. Há uma vontade de tirar sarro às vezes disso tudo ou fazer algo que não tenha nada a ver... Às vezes é como se fosse um escape. Eu gosto do trabalho poder se vestir de várias perspectivas. Acho que, para mim, o interessante é ver como ele vai se relacionar com outros trabalhos, espaços, onde vai estar, com quem, o que vão falar... Porque antes também, novamente essa coisa narcísica, no ateliê, estou com aquelas imagens vivendo quase um romance, mas também me sinto muito aberta e bem em conversar com o público e aprender com o que estão vendo.
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