Em um país desigual como o Brasil, marcado historicamente por processos de disputa e instituições de controle, as formas de viver têm enfrentado tamanhos desafios que a busca por fugas, estratégias e adaptações se tornou uma constante. É uma dinâmica regular do jogo social firmado na estrutura colonial das classes, da concentração de riquezas, das permanências e do aprimoramento da dominação e da exploração. O dito país em que vivemos se move pela morbidez, da insensibilidade e da ganância, onde, como afirmou Ailton Krenak, “viver não é útil”. Todos são impactados por esses fatores, em muitas posições, desde aquela em que se disputa o poder macro até aquela em que se procuram saídas micros. Nada está fora, nada está isento, e as regras estão postas — são muitas e geralmente injustas. Compreender-se nesse processo como um indivíduo que por vezes fala de si ou que empresta a própria imagem para o reconhecimento de uma parcela da sociedade, e que também se ausenta para lançar metáforas visuais para um mundo que parece tapar os olhos, tem sido uma das relações sobre as quais No Martins versa em sua produção.
Não é de hoje que o artista constrói críticas sobre a dimensão da vida humana imersa nas melindrosas facetas e armadilhas das estruturas sociais. Suas primeiras produções já anunciavam esse delinear, ocupando muros e telas e/ou manipulando espaços e objetos. No Martins formula um pensamento inquietante, materializado em visualidades que lidam com o aproximar e o afastar, as certezas e as contradições, os aceites e os limites. Nada está fechado, encerrado, concluído ou definido, mas tampouco completamente aberto e distante. O que No Martins nos apresenta é o caminho do labirinto, em que cada direção, cada instante, cada movimento, cada decisão, trará algo, uma consequência que está dentro do que posso fazer e daquilo que não consigo combater, as Fronteiras inóspitas.
A exposição que se apresenta aqui é o resultado inédito de uma produção que nos acompanhou no último ano, período em que também estive imersa no processo de criação de No Martins. O privilégio de estar com No gerou inquietações e diversos debates, entre idas e vindas ao ateliê, em conversas descontraídas e risadas de uma amizade tocada por desejos semelhantes. Foram meses percebendo a dinâmica construtiva dele, que adiciona em cada obra certa extensão de uma pesquisa artística ao mesmo tempo que abre outra, numa astúcia que nos confronta.
Abrimos a exposição com a instalação Seca, composta por um barco que navega em um pequeno espaço cuja profundidade é dada por um espelho — uma ilusão, uma miragem, uma impossibilidade na possibilidade. Os remos estão disponíveis nas laterais do barco, as ferramentas para botá-lo em movimento. No entanto, o que ocorrerá se ele se mover? Qual seria o impacto do deslocamento desse barco? Em um dos bancos, há outro espelho. Um objeto de mão, comumente direcionado ao rosto. O que se vê em cada espelho? Quem navega? A imagem capturada pelo espelho torna o corpo presente dentro do barco, toda uma dimensão do confronto entre a realidade e suas projeções, o tempo e o espaço. O tempo é outro, com dilatações e acelerações, sendo sentido e projetado, computado ou arriscado.
Avançar com o barco ou ficar sentado nele? É nesse estado tênue, entre olhar pra fora ou pra dentro, que Desocialização das asas nos confronta. O que faz um pássaro permanecer em uma gaiola que está de portas abertas? Um pássaro não pássaro, um objeto que foi moldado, queimado e enrijecido, que se apresenta encantador, brilhante e firme, mas que se quebra com um toque, se esfacela, vira cacareco. O medo entre o ganhar asas e garantir o microespaço conquistado, o dilema entre ser e não ser, estar e não estar. Do mesmo modo, em Zona de conforto o artista descansa na corda bamba, no desconforto que garante certos confortos na vida, mesmo que tal dimensão não tenha sido uma premissa esperada por ele. Ali temos outros dilemas. Celebrar? Descansar? Respirar? Ficar? Sair?
A estrutura do Estado Moderno de Direito é falsamente reiterada pela ilusão de assegurar a proteção das vidas humanas em igualdade de direito, elaborando um sistema de justiça que trabalha para liberar alguns e condenar outros. A dualidade com que a justiça ocidental moderna trabalha, em que tudo se resolve entre o ser e o não ser, entre o estar certo ou errado, reduz a complexidade das relações que ela mesma utiliza. Uma frase integrada na filosofia do pavilhão 2 da Casa de Detenção Carandiru dizia: “Nem todos que aqui estão são, e nem todos que são aqui estão”. Todos são ao mesmo tempo que nem todos são, que nada são. A polaridade com que se constrói o ser ou não ser do sujeito na sociedade atual auxilia a garantir que as mudanças não ocorram, a determinar quem vai ser visto como o perigo e quem deverá combater o perigo. Angela Davis, em A liberdade é uma luta constante, comenta que não se combatem os processos de controle e violência gerando novos sistemas de mesma base. Para ela, “a reforma das prisões só tem servido para criar prisões mais perfeitas. […] Nos perguntar isso revela até que ponto o espaço da prisão não é apenas material e objetivo, mas sim ideológico e psicológico”. Ou seja, eliminam-se o corpo e a mente, em um jogo do visível e o camuflado. A uns caberá a proteção, e a outros, as balas no peito ou o tornar-se herói em uma página de assassinato nos jornais.
Em Dress code e Dress code 2, coletes confeccionados para blindar corpos que atiram são posicionados como objetos que reconfiguram a realidade: um troféu, um acessório, um código a ser acessado. Quem pode obtê-los? Quem possui os aparelhos para decodificá-los? Os últimos anos da política partidária brasileira têm sido marcados por situações pavorosas, protagonizadas por indivíduos e grupos perversos e mórbidos, que reivindicam o direito de matar, buscando facilidades para a compra de materiais bélicos e a garantia da efetividade descarada da injusta justiça que os protege e livraria de todo mal (mau). A liberação de armas se torna campanha na mesma proporção em que se anunciam novos condomínios de segurança máxima. E, como em um jogo virtual, o atirador compra seus aparatos de proteção, cria o alvo e o elimina. Tudo sendo filmado, observado e garantido pelo Estado de direito, por seus códigos de leis e artimanhas, pela ordenação social, territorial e tecnológica.
Vigilância e controle como estratégia de gestão de violências públicas, políticas, sociais, educacionais, policiais. Discursos de proteção, segurança e prevenção na gestão das violências que envolvem procedimentos e equipamentos cada vez mais tecnológicos, produtores de subjetividades falsas, ou seja, de “sensação de segurança” para as pessoas, e em espaços múltiplos. O controle e o poder como discursos e ações de hegemonia convivem diariamente conosco, criando a proteção para eliminar aqueles que não são parte da supremacia desejada.
Fronteiras inóspitas entre o ser e o não ser não é apenas um convite à reflexão, mas também uma convocação à inquietação, ao se compreender dentro de um viver apurado por tecnologias de um sistema que nos coloca constantemente em dilemas: estar ou não estar, negociar ou não negociar, seguir ou se entregar. Em uma ação contínua que busca entender esse jogo, suas regras e instrumentos, aprender a jogá-lo para não jogá-lo, poder ganhar perdendo e perder ganhando, entre meu limite e aquilo que não gostaria, mas que preciso fazer, tendo tudo borrado, tudo meio confuso.
Milão, Itália
Porto Alegre, Brasil
Porto Alegre, Brasil
Porto, Portugal
Brumadinho, Brasil
Buenos Aires, Argentina
Cambridge, Massachusetts, EUA
São Paulo, Brasil