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2023
Fundamentos da pedra
Por
Lais Myrrha

A pedra fundamental que marcou o espaço onde a nova capital do Brasil seria instalada não é propriamente uma pedra. O obelisco, inaugurado ao meio-dia de 7 de setembro de 1922, emblematicamente, feito de concreto armado e pintado de branco, situa-se no meio do caminho entre dois tempos: o de um passado colonial, em que as cidades cresciam ao redor de praças, com suas cruzes e pelourinhos, e o de um futuro moderno desenhado pela cidade-imagem de vastos espaços, com seus edifícios-esculturas erigidos não mais ao redor da cruz, mas sobre ela. Há quem sustente que a insistente aparição de obeliscos em nossos largos e praças são uma espécie de reminiscência, de memória dos antigos pelourinhos.

Foi olhando para um monumento pouco vistoso, insignificante e um tanto suspeito que comecei a esboçar esta exposição, pelo riso que me provocou imaginar políticos da época e algumas pessoas célebres inaugurando a “Pedra Fundamental da futura capital dos Estados Unidos do Brasil”, que, convenhamos, é um tanto mal ajambrada. Depois, pensando melhor, cheguei a outra conclusão. Talvez nem tenha havido celebração alguma no local, e a pedra fundamental possivelmente foi instalada por um grupo de trabalhadores que lá chegou, depois de uma longa e exaustiva viagem. Devem ter permanecido pela região por alguns dias, debaixo de um sol inclemente, com pouca água e dormindo em barracas improvisadas. Enquanto isso, em algum lugar do país, o feito devia estar sendo brindado ao redor de uma mesa farta. Meu riso cessou. Nunca soube como foi a inauguração, ou mesmo se houve alguma. Nem procurei saber. Não sei se no Rio de Janeiro o fato foi celebrado ou se motivou conspirações e protestos contra o marco que anunciava a destituição da cidade de sua importância capital com a finalidade de conectar o norte e o sul do país. 

Continuei a olhar para aquela pálida pedra fundamental e ela frustrava minha expectativa de encontrar um grande pedaço de rocha bruta com apenas uma das faces lapidadas para abrigar alguma inscrição ou acomodar uma placa. Eu pensava que uma pedra que se preze, de nascença, como escreveu João Cabral de Melo Neto, deveria “entranhar a alma”, deveria guardar a ideia de um sítio ainda intocado pela ocupação humana ou de um tempo inorgânico. Olhar insistentemente para o branco de sua superfície, sob a luz intensa e ofuscante do cerrado, torna difícil perceber a imprecisão de suas arestas manufaturadas e faz do obelisco uma brilhante alegoria de carnaval.

Então, compreendi que a pedra fundamental de Brasília era uma representação, um modelo ou uma maquete de um monumento genérico (o obelisco), cuja alvura talvez sirva apenas para esconder as marcas deixadas no concreto pela ponta dos dedos dos trabalhadores e da fôrma precária usada em sua construção. Em resumo, o branco serve para apagar seu fundamento. Percebi que aquele triste monumento contrabandeava, de modo insólito e silencioso, operações econômicas e sociais advindas desde o Brasil colônia. Era mais do que uma maquete. Era quase um ensaio daquilo que veio a seguir, a construção de Brasília.  

Em 1922, o concreto armado de que foi feito o obelisco ainda era uma tecnologia pouco utilizada, e certamente quem o planejou não previu que esta seria a técnica predominante usada na construção da futura capital, muito menos a que ponto  a imaginação de um artista (arquiteto) poderia conduzi-la. Em 1922, os problemas fundamentais que alicerçam a história da construção civil no país e os do Brasil colônia não eram tão diferentes, sobretudo naquele momento: contrabando, desvio e superfaturamento de materiais, maquiagens, penduricalhos de toda sorte, exploração dos corpos dos trabalhadores, precariedade e inventividade. De súbito, olhando ainda mais de perto a decepcionante pedra fundamental de Brasília, percebi que ela se convertera numa espécie de oráculo gigante, como qualquer outra coisa pode se converter se a mirarmos detidamente, se começarmos a pensar sobre sua história e função, sobre seus fundamentos. Como o Aleph de Jorge Luiz Borges ou o delírio de morte de Brás Cubas, vi através do obelisco uma avalanche de tempos e imagens, desde as várias igrejas mineiras recobertas com folhas de ouro e as da estória do santinho do pau oco até as pilhas e pilhas de madeira usadas nas formas para a fabricação do concreto armado que daria a Brasília sua singular aparência, me fazendo pensar nas várias soluções improvisadas encontradas durante o período de sua construção. Vi os modelos brancos e leves dos edifícios e o peso de sua concretude real. Vi que tudo era imagem, desejo, ilusão, alegoria, corpos e peso brutal, desde o início, feitos à mão.