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2022
Gustavo Caboco: conectando histórias indígenas no Brasil
Por
Nathalia Lavigne

Gustavo Caboco tinha 10 anos quando acompanhou a mãe, Lucilene Wapichana, na sua primeira viagem de volta ao estado de Roraima – mais precisamente até a aldeia Canauanim, próxima à cidade de Boa Vista. O retorno à terra de Lucilene, raptada por uma missionária em 1968 também aos 10 anos, migrando entre diversas casas até se fixar em Curitiba, foi para ele onde tudo começou. Ali conheceu sua avó e outros parentes indígenas, e finalmente pôde ver de perto as cenas que há tanto tempo imaginava das histórias que ouvia pela mãe. Aquela memória, embora sempre presente, agora ganhava vida. “Dei uma pisada num formigueiro, levei uma flechada no pé, um banho de pimenta e preparamos uma damurida. É o início da minha jornada de retorno,” escreve na abertura do livro Baaraz Kawau (2019), também ilustrado por ele.

Era 2001, o Brasil tinha acabado de passar pelas comemorações de seus 500 anos, efeméride ainda chamada de forma equivocada de “aniversário do descobrimento.” As críticas à celebração, que ignorou especialmente o genocídio indígena, não era algo que passava pela cabeça de Gustavo naquele momento. Mas não deixa de ser curiosa a coincidência de um movimento oposto iniciado por ele e pela mãe: não o de descobrir sua origem, mas de simplesmente encontrá-la, juntando os fios de uma história interrompida.

Gustavo Caboco Wapichana se apresenta como um artista indígena de Curitiba, Roraima, unindo a cidade onde nasceu e cresceu ao estado de origem de Lucilene, que estão geograficamente distantes. Afirma-se Caboco dando um novo sentido ao termo usado de forma pejorativa para se referir à miscigenação entre o indígena e o branco. Wapichana é o nome da etnia à qual pertencem. A conexão entre Curitiba e Roraima também se tornou parte central de sua investigação e prática artística, que propõe um “retorno à terra” em um sentido amplo – ora poético, ora bem literal. “Às vezes as pessoas falam que acham lindas as metáforas que eu trabalho, mas minha insistência é dizer que não são metáforas, são coisas que aconteceram. Eu coloco essa marca temporal em 2001, pois é o momento de retorno à terra, literalmente”, afirma.

“As tramas do jereré e o retorno do manto”, apresentado na exposição “KWÁ YEPÉ TURUSÚ YURIRI ASSOJABA TUPINAMBÁ – ESSA É A GRANDE VOLTA DO MANTO TUPINAMBÁ”, 20 x 20 cm, 2021.

É como se aquela viagem, de certa forma, seguisse acontecendo. Também foi ali que Gustavo iniciaria seu percurso como artista, embora tenha se dado conta disso bem mais tarde. “Minha mãe me emprestou uma câmera porque ela queria registrar essa volta que tanto lutou para que acontecesse. Como ela não sabia usar, me falou que esse seria o meu papel. Aquela acabou sendo, se olho com os olhos de hoje, a primeira documentação artística que a gente fez e segue fazendo,” reflete.

A produção em conjunto dos dois se origina em grande parte no ateliê de costura de Lucilene, ambiente onde Gustavo cresceu e foi se tornando também seu espaço de trabalho. Se fôssemos ouvir os fios ali reunidos, como aprendeu a fazer com a mãe, saberíamos que o bordado é uma influência direta de missionários beneditinos presentes na região onde Lucilene viveu até os 10 anos, uma controversa relação de tutela exercida pela igreja em territórios indígenas. Foi por essa atividade que ela traçaria seu caminho ao mesmo tempo como subsistência, expressão artística e de sociabilidade. “Quando ela é levada da comunidade e passa a trabalhar em casas de famílias, o fio e o tecido se tornam uma ferramenta de relação,” conta. “Tanto de subordinação, de estar na casa de outras pessoas à serviço; ou como de socialização. A arte acaba sendo também esse campo de encontros.”

Não tem muita importância se é na escrita, no bordado ou no desenho que a arte de Gustavo se materializa: o essencial está no que vem antes de tudo isso, como escuta ou diálogo. O que também acontece de muitas maneiras: pode-se ouvir nos fios, no caso da costura (“Se você ouve o fio, ele te leva para vários caminhos de como as culturas se chocam, se encontram e se fortificam”); ou nas pedras, como fez em Recado do Bendegó (2018), apresentado na 34ª Bienal de São Paulo (2021). No vídeo de 11 minutos, Gustavo assume o papel de interlocutor do meteorito, narrando um belíssimo relato imaginário da pedra que já testemunhou tantos processos de destruição até culminar naquele incêndio.

Gustavo Caboco, Roseane Wapichana, Lucilene Wapichana e Wanderson Wapixana, Não Apagarão Nossa Memória, Museu Nacional do Rio de Janeiro, impressão fotográfica sobre papel algodão, 1/6, 45 x 30 cm, 2021.

Foi no Museu Nacional da UFRJ que ele teve outro encontro marcante. Três meses antes do prédio incendiar, Gustavo passou pelo Rio de Janeiro e quis conhecer a coleção de artefatos indígenas ali exibida. Se deparou com uma Borduna Wapichana (arma feita com pedaço de madeira cilíndrico) cuja data era muito próxima à idade de seu tio-avô Casemiro Cadete, que lutou pela demarcação de terra na mesma época. A história é narrada por ele em um texto e desenhos na publicação Baaraz Kawau, onde descreve aquele encontro como um “curto-circuito”, especialmente levando-se em conta o que aconteceu depois.

Gustavo encerra o livro contrapondo a data da morte do tio, aos 93 anos, com a da Borduna, aos 94. Para os dois, ele firma um compromisso de quem, como ele, permanece no “campo após o incêndio,” significado da expressão Baaraz Kawau em português: “Os corpos-memórias são vivos, mesmo após a combustão. Não apagarão a nossa memória”, escreve.