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2021
Gustavo Caboco – o assombroso triângulo Roraima / Paraná / Rio de Janeiro / Roraima
Por
Paulo Herkenhoff

A artista Lucilene Wapichana saiu forçadamente de sua aldeia, na infância, em 1968, aos 10 anos de idade, porque foi dada por seus pais a uma família de Boa Vista. De Roraima, foi parar em Manaus e, de lá, fixou-se em Curitiba, onde nasceu seu filho Gustavo. “Quando jovem, foi dito ao tio Casimiro que sua língua wapichana era feia. ‘Língua do mato.’ ‘Língua de caboco’”, escreveu Gustavo Caboco no livro Baaraz Kawau:⁵⁹ “encontrei no desenho, no texto, na escuta, no bordado, no som, formas de dialogar com as atualidades indígenas e minha identidade”

A arte de Gustavo Caboco está entre os projetos de arte indígena mais singulares do século XXI. Caboco se põe ao lado de alguns projetos desenvolvidos na Amazônia. O primeiro é a ação com pintura e desenho sobre a ancestralidade, narrativas, memória, saberes e educação do povo Huni Kuin sob a liderança dos pajés Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru e Dua Busē (ver págs. 222-239). O segundo é a complexa arte política do polissêmico Denilson Baniwa sobre assuntos candentes da contemporaneidade relacionados a poder, dominação e emancipação dos indígenas (ver págs. 260-263).

O terceiro é Ailton Krenak. O quarto é o guarani Xadalu Tupã Jekupé, em Porto Alegre. Embora haja outros artistas indígenas igualmente significativos, esses são os que integramos nesta comparação. Esses exemplos nos conduzem às indagações: o que é ou quem é um(a) artista indígena? O que faz um(a) indígena ou um(a) artista ser um(a) artista indígena?

Gustavo Caboco não resumiu sua arte à pintura num contexto contaminado e oscilante entre arte indígena e arte ocidental, ou à criação de estilemas que lhe garantam um signature work no contexto do styling e da comodificação da dita arte indígena contemporânea. Suas narrativas expandem a condição simbólica dos valores espirituais e da história sobre os quais trabalha. Ele se apresenta como artista plástico e designer gráfico, uma combinação que funda sua linguagem própria, inconfundível.

“O que se deve reconhecer na arte de Gustavo Caboco é eficácia simbólica de suas imagens e seu trânsito pelo tempo fantasmal das sobrevivências”, nos termos da interpretação de Georges Didi-Huberman dos conceitos de Nachleben e Pathosformel desenvolvidos pelo historiador da arte Aby Warburg.⁶⁰ Interessa menos aqui a relação exata de Warburg com a antropologia e bem mais as operações de Gustavo Caboco com a história e com as imagens, e, sobretudo, como ele tece antropologia, história, imaginário e autobiografia em suas narrativas.

Um exemplo é seu livro-de-artista Baaraz Kawau, ⁶¹ uma joia gráfica em vermelhão, como a cor do título da primeira edição de Macunaíma (1928), de Mario de Andrade. Em várias páginas de Baaraz Kawau, Gustavo Caboco intermeia palavra e desenho para intercalar emoções, os Wapichana como objeto do conhecimento antropológico no Museu Nacional, sua família, quase coincidência de datas, o incêndio e as perdas nessa instituição: “Levei um choque ao ver uma borduna Wapichana, em julho de 2018, no Museu Nacional do Rio de Janeiro.”

“Ocorreu literalmente um curto-circuito ao ver o objeto, pois a idade da borduna me lembrou meu tio Casimiro Cadete, de nome indígena Cassun: o peixe-elétrico. Nosso tio Casimiro nasceu em 1921, em Roraima. Lá no Museu, no Rio, a data da borduna era de 1924.”

“O choque-elétrico que tive no Museu Nacional do Rio de Janeiro foi ver uma peça com a idade muito próxima deste parente. Alguns meses depois o museu se tornou cinzas. Pensei na borduna Wapichana em chamas.”

“Lamento muito essa perda histórica. É a queima da primeira instituição científica do país, a maior biblioteca de antropologia da América Latina, o primeiro programa de pós-graduação em antropologia, a Borduna Wapichana, assim como tantas outras peças importantes para a história do mundo e para a história indígena.”

Por fim, Baaraz Kawau oferece uma palavra de esperança à reconstrução possível do Museu Nacional, da qual ele quer participar:

“A repatriação é cinza. Cassun, Casimiro, faleceu aos 93 anos. A borduna, com 94 anos, no incêndio em setembro de 2018./ Evoco aqui as palavras Wapichana ‘Baaraz Kawau’, que assinam o nome desta publicação e significam ‘o campo após o fogo’./O campo queimado abre a porta para um novo campo, cheio de verde, de caça e oportunidade”.