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2024
Histórias de meninos
Por
Ivo Mesquita

A tua voz acompanha-me dentro de mim. ... Descansa, pai, dorme pequenino, que levo o teu nome e as tuas certezas e os teus sonhos no espaço dos meus. ... Sou forte nesta terra nos meus pés.
— José Luís Peixoto, Morreste-me

 

Alex Červený é um grande contador de histórias. Ao longo da carreira, sua prática artística vem constituindo uma obra feita de mapas, paisagens, retratos, relatos de viagens, permeados de mitos, heróis, trágicos, sátiros, aventureiros, deuses, ninfas, santos e rainhas. A partir de sua experiência pessoal e de seu tempo, a figuração narrativa de suas criações nos conduz, com pinturas, desenhos e gravuras, por viagens imaginárias na superfície do papel ou da tela, a coleta paciente, amorosa, por extensos repertórios. Como um andarilho viajante peregrino, ele faz do olhar do outro seu companheiro, um cúmplice no cruzar dos territórios e das paisagens, sempre reinventados. Por um lado, cada imagem ou cena é resultado do trabalho paciente com tintas e pincéis, meticuloso nos procedimentos e detalhes, gestos contidos e disciplinados, um desenho delicado como uma tatuagem aplicada sobre a pele da pintura. Por outro, revela um espírito curioso e destemido, com um imaginário original e diversificado, em que se mesclam notas autobiográficas com mapas, enciclopédias, almanaques do saber, telenovelas, toda sorte de música, literatura de viajantes, arqueologia, cosmogonias, botânica, cinema, livros, redes sociais e muitas jornadas a olhar para o outro. Trata-se de um espaço generoso, de tempos sobrepostos numa colagem, pleno de minúcias e curiosidades, figuras e palavras intrigantes, algo sensual, denso e espirituoso, aberto à imaginação. Nada dramático ou retórico, ainda que, por vezes, assombrado pela solidão e melancolia.

A arte de Červený traz para a contemporaneidade a tradição dos miniaturistas, dos livros medievais iluminados, dos desenhos de naturalistas e decoradores, dos motivos populares, dos gravadores das vistas e dos mapas, das histórias narradas em quadros. São parte da construção da visualidade, aqueles que nos ensinaram a olhar para as coisas pequenas, as representações reduzidas a sua essência, sejam narrativas históricas, registros de paisagens, do mundo natural ou da vida cotidiana. Mas também é notável seu tributo à arte dos calígrafos, artistas da escrita manual, nem sempre percebidos, mas responsáveis pelo registro de ritos, documentos e memórias, pela redação dos textos sagrados e pelas contestações profanas, pelo graffitti urbano político e social. Daí a importância das citações textuais nos trabalhos, das listas de nomes, lugares, plantas, bichos, línguas, em que as letras são forma e desenho nas composições, construindo um rendilhado, um véu sobre a pintura, ao mesmo tempo que as palavras e frases funcionam como entrada, contraponto, provocação, humor sobre as imagens companheiras no plano. Červený é um calígrafo sofisticado e instruído sobre diferentes escrituras e signos gráficos, a ponto de escrever palavras de trás para a frente, um procedimento preciso e estratégico na construção das pinturas.

Os trabalhos reunidos na presente exposição apontam para um outro momento na produção de Červený. Se em obras anteriores experimentávamos um tempo elíptico, entre presente e passado, com as imagens e referências que empregavam, o tempo agora parece suspenso, como na pintura do homem no vácuo escuro da ampulheta cercado pela areia (Clessidra). Com uma atmosfera rarefeita, onírica, estes trabalhos trazem um olhar mais introspectivo, reflexivo do artista sobre sua condição humana, seu momento e seu lugar. Propõe: Acercate y oye como va mi corazón; o desnudamento da alma. Faz uma espécie de radiografia sentimental (Lição de anatomia), uma revisão do tempo vivido, em que lendas, mitos e heróis ficaram para trás ou foram sustados. Ulisses volta para casa, velho e cansado, para viver o final com seu filho, Telêmaco, que não o reconhece: c’est moi qui suis Ulysse. O homem — o filho o pai — está sozinho, estranho como un mono blanco, no alto da montanha, no meio do oceano, do lago, da terra árida, assoberbado por sua memória e ancestralidade. O corpo e o tempo passado pesam. Há algo de lamento em frases como young hearts run free ou only the strong survive. Mas também ironia: tal qual um Narciso, o homem se olha no lago e quer o corpo prometido por influencers e cirurgias estéticas nas redes sociais (You Belong to Me). Não há amargura, apenas um dolorido presente contínuo, melancolia.

O conjunto delas parece falar de um rito de passagem, o do filho para o pai. Continuidade, envelhecer, legar. O grande desenho (Pais e filhos) com a figura do filho curvado diante do pai, que carrega o menino, é a representação dessa liturgia. Červený faz uma crônica sobre o tempo presente, o momento preciso de uma geração, não apenas de artistas, que ao encarar a paisagem à sua volta sente um desconforto com o mundo. Não mais the joy of everyday life. Não apenas o corpo cai, mas tudo ao redor reflete decadência, ameaça: o meio ambiente, a política, a vida intelectual, a economia, o trabalho, a guerra. Assusta-se com a percepção do que chamaria de “deficiência intelectual” nas transformações e nos ajustes da condição humana. Não se trata de uma nostalgia dos “bons velhos tempos”, que nunca existiram na história, mas de um sentido aguçado para noções como brevidade, pertinência, inequidade, culpa.

Červený, a seu modo, registra a realidade que se reforma com humor, leveza e poesia, resignados. Houston, we have a problem, grita a mulher para o homem cercado de bitucas de cigarro (Houston, We Have a Problem). Se há algum desalento, ele, porém, encontra em sua prática a possibilidade de fazer pontes, dançar, soltar fogos, voar. Imagina a humanidade como uma concessão à possibilidade de romantismo. Nesse sentido a presença do crocodilo verde na pintura Orbis Sensualium Pictus, além da música de Caetano e da marca Lacoste, lembra o deus azteca Chipactli, um exemplar gigante que, depois de morto numa batalha entre deuses, gera, a partir de sua carne, a Terra e a humanidade. No antigo Egito era Sabeque, o homem com cabeça de crocodilo, que tinha poderes de fertilidade e ordenava as pompas fúnebres.

Um segundo desenho (Teatro) traz uma paisagem desértica — pedras, cactos, vegetação desfolhada — contra um céu de calígrafo, tramado como redes de pequenos traços sobrepostos, onde cinco homens tronco/parafuso parecem fazer um esforço de rosquear-se à terra, de fincar raízes, marcar uma passagem sem redenção. Descansa, pai. Ficou o teu sorriso no que não esqueço, ficaste todo em mim. Pai.¹

 

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1. José Luís Peixoto, Morreste-me. Porto Alegre: Dublinense, 2015, pg. 57, 60 e 61. Publicado em Portugal pela primeira vez em 2000.