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2023
Inversões e autonomias
Por
Gustavo Caboco

Para garantir o direito ao nosso território indígena em Roraima, uma das estratégias das nossas famílias Wapichana foi fortalecer as relações com o plantio. Das retomadas de terra, e da luta sob a mira de pistoleiros, foram as roças e nossa cultura que também firmaram nosso lugar.

Eu relato minha história do ponto de vista que vivenciei enquanto wapichana e também como essas histórias chegaram até mim pelos kuadpayzu, os historiadores da nossa cultura. Parto, ainda, da análise desta genealogia colonial do garimpo ilegal, o narcogarimpo, o desmatamento, as violências ambientais e as violências contra os povos indígenas no estado de Roraima. 

Com o apoio da grande mídia e, principalmente, por meio das denúncias realizadas pelo povo Yanomami sobre a presença de mais de 20.000 garimpeiros ilegais em seus territórios, esse ano mais pessoas tomaram consciência dos crimes direcionados aos povos indígenas de Roraima. As políticas de “passar a boiada” autorizaram esta presença criminosa que resultou numa série de violações: violências contra os corpos das mulheres e crianças, abusos da terra-rios-florestas, propagação de doenças e mortes. 

Presenciamos, no início deste ano, o governo brasileiro — por meio dos ministérios dos Povos Indígenas, da Saúde, do Meio Ambiente, da Defesa e da Justiça, além de Ibama, Funai e outros órgãos —  buscar uma articulação para remover os garimpeiros. A notícia que se tem, até o momento, é que o exército não conseguiu expulsar estes invasores —e que doenças, como malária, pneumonia, coronavírus e a contaminação da água com mercúrio mantêm a crise nos territórios originários.

As leituras dos equívocos dessa genealogia colonial em Roraima demonstram como vivemos um contexto de abusos, racismos e preconceitos. É o caso das manifestações do ministro Gilmar Mendes, que defendeu a mineração em terras indígenas na votação do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2023. Mendes afirma que em Roraima os povos indígenas encontram-se em situação de “penúria” e que “geram lendas urbanas de que em toda área indígena tem minérios e riquezas minerais que não podem ser exploradas”. Davi Kopenawa chama de xawara estas epidemas que vêm das terras exploradas e conta que Omamë, o criador da humanidade Yanomami, guarda o ouro debaixo da terra para que não fiquemos doentes. Estas vivências de mundo não são “lendas urbanas”, o coronavírus, para o povo Yanomami, é resultado desta xawara, por exemplo.

Nossas culturas indígenas também foram encaradas como “penúria” pelo ex-governador de Roraima Romero Jucá nos anos 80, quando fez a proposta do Projeto Meridiano 62, que apoiava o avanço do garimpo ilegal. Tornava-se, assim, o “salvador dos garimpeiros”. Roraima, estado do narcogarimpo. 

Há um monumento em homenagem aos garimpeiros no centro de Boa Vista — que também se tornou um ponto onde o movimento indígena faz manifestações contra estas várias violências. O garimpo está no brasão do estado e é considerado motivo de orgulho para alguns, um reflexo das políticas da ditadura militar, que tornaram essas ações extrativistas e as explorações de minérios na Amazônia em símbolo de desenvolvimento, no projeto Radam. Desde então, a pauta vem se atualizando e os crimes contra os territórios e populações indígenas, aumentando.

Nossas famílias indígenas em Roraima são grandes vítimas dessa genealogia colonial. Um exemplo é a serra do Tepequém, a pouco mais de 200 km de Boa Vista, que, nas décadas de 30, 40, 50 e 60, foi alvo dessas práticas de amputamentos da terra com a extração de ouro e de diamantes. Isto está relatado nas cartas de monges beneditinos que se instalaram nessa região. 

Foi um boato da morte de nosso avô Casimiro no garimpo Tepequém que fez ele e seus irmãos firmarem um compromisso com a terra e o plantio. Nosso tio e avô Casimiro foi uma importante liderança nas lutas da demarcação da Terra Indígena Canauanim, mas ele, assim como vários indígenas, se submetiam a estes processos do garimpo por conta de uma violência sistêmica e colonial direcionada aos povos indígenas. O boato de sua morte causou luto na comunidade e família. Quando Casimiro retornou à maloca e presenciou tamanha comoção por sua "partida" propôs um ponto de virada aos wapichana: as inversões e autonomias. Plantar bananeira para resistir com a cultura wapichana, resistir com vida, e, assim, garantir nossa terra originária. Garimpo é morte, doença, epidemia.

O compromisso com a terra — por meio do plantio de bananeiras, as plantações de milho, de batata-doce, de maniva, de abacaxi, de caju e de tudo o que você pode imaginar — foi a estratégia que nossas famílias criaram para manter nossa história viva. Assim nossos kuadpayzu nos contam. Esta memória está em nós: as famílias que presenciaram e lutaram por estas terras. Nossa cultura vive em cada passo que damos — e plantar bananeira na arte, para mim, representa este momento das inversões. Estão no nosso caminho a autonomia e a consciência de liberdade e justiça, para que tenhamos autonomia das nossas vozes, das nossas culturas, das nossas terras, dos nossos direitos, nas literaturas e nas artes. Autonomia são as práticas que estão ligadas ao nosso bem viver.

Plantar bananeira, para mim, foi uma forma de entrar em diálogo com a arte que se encontra no sudeste — isto aliado com práticas de arte e educação, oficinas de murais e pintura em Roraima, assim como produção de cartazes e ativismo. No trabalho Paisagem Ancestral, proponho a relação com nossos antepresentes: assim, mudas de bananeira foram transplantadas do Canauanim e as bananeiras do Tio Casimiro foram enviadas para São Paulo. Desse modo seguimos multiplicando nossas roças e nossas memórias. Mas não só de bananeiras se vive uma cultura. 

Assim venho trabalhando a extensão de nossos territórios: plantando bananeira, plantando algodão e plantando arte como forma de documentação. Memorar as bananeiras do Tio Casimiro é um manifesto frente às políticas de demarcação de terras indígenas. Assim seguimos os rastros e passos de nossos antigos, nas re-visitas, retorno à terra e transformando "meu avô em mim" em "nosso avô em nós" — pois nossas culturas e vozes são múltiplas, vivas e diversas.

 

Escrito especialmente para a revista Morel, edição 9, publicada na Primavera de 2023 com o título 'Olha a banana'