Bene vixit qui bene latuit*
Repousa sob a laje
o que viveu oculto.
Poupem-no do ultraje
do tumulto.
* “Bem viveu quem viveu oculto”, Lema de Descartes (N. A.)
– Paulo Leminski, minioração fúnebre para rené descartes, Toda Poesia (1976)
I. Onde o invisível toca?
Convido o poeta paranaense Leminski (1944-1989) e o filósofo francês Descartes (1596-1650) para localizar alguns entendimentos desse nosso encontro: nem esta conversa que estamos iniciando, nem esta exposição em questão, nem as obras apresentadas nesta publicação têm a intenção de “tornar visível” ou a pretensão de “revelar” os mistérios daquilo que é oculto ou inconsciente.
No caso da “minioração fúnebre”, de Leminski, me parece que se faz um convite a um “fechamento de ciclo” ou “fechamento de um tempo”. Repousa sob a laje o tempo que Descartes viveu, em que a estratégia de ser invisível estava relacionada a manter-se vivo — por isso, quem viveu invisível bem viveu. Porém, isso ainda me soa como uma realidade para populações indígenas no Brasil, no tempo do filósofo, a Igreja católica condenava e jogava na fogueira aqueles que acreditavam que a Terra não seria o centro do universo. No tempo moderno do poeta, a falência da razão ocidental se expressa naqueles que sobreviveram às repressões da ditadura no Brasil dos anos 1960 e 1970 e na crise da construção do sujeito moderno-contemporâneo.
Nesse início de conversa, há uma escolha consciente e temporal de pensar em Leminski e Descartes. Leminski é do Paraná, um dos lugares de onde proponho meu trabalho que segue Vom Paraná Zum Roraima.¹ O poeta faleceu no mesmo ano em que nasci, 1989, então o vejo como uma referência sobre o que foi dito, a partir do Paraná, antes de eu me situar neste mundo-Brasil-Wapichana. Descartes, paizão da razão, já nos revela em si um recorte temporal mais próximo da idade da criação do Brasil colonial.
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¹ Vom Roraima Zum Orinoco (1923) é como o antropólogo Theodor Koch-Grünberg assina-captura seus materiais de pesquisa coletados entre os povos indígenas de Roraima. Vom Paraná Zum Roraima é uma apropriação do título e nos convida a pensar os caminhos de retorno à terra wapichana que venho realizando desde 2001. Para os que estão chegando agora: esse alemão é quem levou nossas histórias de Makunaimã para as peles de papel na Alemanha [de onde escrevo este texto]. A instalação Roraimarte II (2024), na exposição, aprofunda tais questões.
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Retornos, retornos, retornos, retornos, retornos, retornos, retornos.
Aquele que bem viveu oculto, Descartes, se refugiou na Holanda em 1618 como um exercício de liberdade. O francês decidiu segurar a publicação do Tratado do mundo e da luz (1623) com medo de enfrentar a inquisição e ser condenado pelo Santo Ofício. Mas, enquanto Descartes se refugiava com segurança em Amsterdam, nossos territórios wapichana na Guiana já sofriam as guerras coloniais ante o domínio Holandês em 1648. Guerras estas que nos deixaram marcas e memórias que persistem até hoje em nossa história wapichana.
II. Costurar o invisível
Você percebe como, a partir de um trecho curto de Leminski, abre-se uma contextualização histórica wapichana e uma conjuntura sobre o lugar, o léxico e o movimento do artista Gustavo Caboco? É nessa pedagogia do invisível que tenho buscado trabalhar nos últimos anos quando evoco as palavras “coma colonial”, por exemplo. Perceber aquilo que está presente e tão escancarado, tão impregnado, tão exposto e normalizado em forma colonial, mas que não notamos. Vê o invisível? Esse invisível não está oculto, mas presente. Incômodo.
Fico incomodado em pensar, por exemplo, que um filósofo francês podia se refugiar num país com os famosos campos de tulipa-otomana, ao passo que os próprios holandeses encampavam guerras em nossos territórios e escravizavam corpos wapichana. Fico incomodado com o fato de que figuras como Maurício de Nassau sejam apresentadas em livros didáticos de escolas brasileiras como um personagem “das invasões holandesas” no Brasil, mas que não retratam com a devida atenção a violência dessas invasões contra os povos indígenas. Que na história da arte, figuras escaladas pelo pelotão de Nassau, como os artistas Albert Eckhout e Frans Post são canônicas e intocáveis até pelas chamas. São imagens “passíveis” de erro e vangloriadas por sua qualidade técnica e histórica, ao passo que o racismo das imagens é pouco debatido. Fico incomodado em pensar que, até hoje, os territórios wapichana estão em disputa, como na região do Essequibo,² na Guiana, por exemplo, que a Venezuela almeja por conta do petróleo. A Guiana, que foi holandesa e depois inglesa, alcançou sua independência em 1966. Nossos parentes indígenas tiveram de escolher em que lado ficariam, na Guiana ou no Brasil, e irmãos, famílias, territórios indígenas e línguas foram separados.
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² Essequibo é um dos rios em que nosso avô Makunaimã se transformou depois da queda de Tamoromu, a grande árvore wapichana apresentada na abertura da exposição em Que acontece quando cai uma grande árvore? (2023). Assim contam nossos antigos. Nos debates geopolíticos entre Venezuela e Guiana, em nenhum momento nossos territórios indígenas são referenciados pela mídia. Invisibilizados, estas terras e rios seguem sendo alvos de exploração de “recursos naturais” sem que um rio, por exemplo, seja considerado sujeito de direito ou avô — que é como o percebemos.
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III. Manhaba’u significa invisível em língua wapichana
Em 2023 fui autor convidado a participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e, para a ocasião, organizei o lançamento da publicação Literatura do invisível (2023). Publicado pelo selo editorial PICADA, esse livro é um ensaio-manifesto que propõe um diálogo com os diversos seres literatos da Terra e une meu trabalho de artes visuais à produção textual. Literatura do invisível trata de questões dos direitos indígenas através da arte e também traz à tona o debate sobre questões ambientais que enfrentamos, destacando as relações de consumo e os impactos na saúde do planeta, que não são coisas invisíveis, mas que, pelo contrário, estão bem à vista. Quanto dessa presença do invisível influencia nossas relações socioambientais? Quanto desse visível se mantém invisível para nós? Nesse contexto expositivo, a publicação torna-se objeto curatorial e embasa o pensamento expográfico e a seleção de obras apresentadas.
Na exposição Manhaba’u: onde toca o invisível, apresento AMAZAD, uma série de bordados que tratam de nossas relações com o tempo e a memória da Terra. Numa das obras da série, Gravidez-gravidade e as doenças do mundo (2024), há uma figura feminina prenha do planeta Terra. Se a Terra é mãe, existe também uma Mãe da Terra (2024), e estas doenças do consumo, das medicinas e vazios estão representadas na obra.
O debate ecológico é central em Manhaba’u. Toco nessas questões a partir de um ponto de vista mais pessoal, como na pintura Retorno à maloca (2024), em que apresento o fio-forte-wapichana³ e os pés de algodão fiados por nossas avós por meio dos fusos. Esse símbolo forte retrata o fio de nossa tradição e de nossa cultura que habitam o ateliê de costura de minha mãe Lucilene Wapichana. Essa linha que atravessa gerações e se desloca em paisagens é o fio com que costuramos o mundo.
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³ Fazer o fio forte é importante para conseguirmos tecer redes resistentes. Temos trabalhado numa pesquisa, alinhada com nosso território e os fios wapichana que estão no Museu Britânico, na Inglaterra. Desse modo, conectamos a história do algodão wapichana e os impactados das relações coloniais da expansão inglesa no Brasil.
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IV. Costura é resistência indígena
Há um fio que conecta comunidades e a história da arte. Quando silenciamos, nós nos calamos, mas foi a partir do ateliê de costura de minha mãe que iniciei meus aprendizados de formação indígena e ética wapichana. Se a máquina de costura foi objeto colonial imposto nos territórios através das madres e dos padres, agora se torna objeto de resistência e autonomia, quando uma mulher indígena se apropria dessa ferramenta como forma de relação com o mundo.
Assim, através da arte, seguimos marcando pontos na história e tecendo narrativas que são invisibilizadas e muitas vezes desvalorizadas, mas que, para nós, representam caminhos de formação e fortalecimento. Para esta exposição, pedi à minha mãe que selecionasse seis objetos de seu ateliê de costura para marcar esse manifesto de resistência indígena evidenciado pelo nosso ateliê. Adicionamos etiquetas catalográficas em cada objeto e os “congelamos” no tempo através da resina. Apresentar essa obra numa base de madeira não seria o suficiente, então eu e minha produtora Ana Rocha fomos atrás de madeira amazônica apreendida ilegalmente. Encontramos pedaços de castanheira amazônica, os quais formam a base da obra. Assim nasceu Costura é resistência indígena (2024).
Manhaba’u: onde toca o invisível trata de pensar o invisível a partir de meu lugar de origem, mas também de nos conectar com essas linhas invisíveis que nos tocam, buscando, dessa forma, propor ações de formação e fortalecimento de nossa presença e relação com a Terra.
Milão, Itália
Porto Alegre, Brasil
Porto Alegre, Brasil
Porto, Portugal
Buenos Aires, Argentina
Cambridge, Massachusetts, EUA
São Paulo, Brasil