MENU
2023
Maya Weishof: a pintura como problema
Por
Renato Menezes

“De olhos abertos, parece ainda olhar as imagens assustadoras de seu sonho.”
— Jean Delumeau, História do medo no Ocidente, 1300-1800: uma cidade sitiada

 

I.

A história da arte do Ocidente, desde seu nascimento, costuma dividir os artistas em duas grandes categorias: os desenhistas e os coloristas. Não raro, nessa história, os primeiros são privilegiados em detrimento dos últimos. Assim, dizem, a própria história da arte nasceu: Vasari, a quem se atribui a paternidade da disciplina, identificou entre os artistas florentinos o primado do cálculo e da medida; entre eles, o nascimento da perspectiva e o renascimento das proporções clássicas coincidem com a emergência do racionalismo moderno. “Pittura è cosa mentale”, dizia Leonardo. Nessa história, porém, foram preteridos os artistas venezianos, para os quais “pittura è cosa corporale”. Entregues à plasticidade da matéria e à espessura da cor, acomodaram-se bem na fama de instintivos, espontâneos e dramáticos, cuja obra dá vazão aos recônditos mistérios do inconsciente. Há, na pintura veneziana do Renascimento, uma especial atenção aos sentidos, particularmente o toque, que se manifesta através da carnação e das texturas, produto da dissolução da linha; a pintura veneziana nunca teve medo nem da noite, nem das sombras; nela, não vemos nenhum esforço de síntese: as dúvidas são dúvidas e servem para ser experimentadas como manchas de cor, borrões e limites decompostos. Na pintura veneziana, as linhas não têm início nem fim; são sempre espaços de experiência sensível, aberta à qualidade mais vaporosa e profunda que a cor pode atingir. Por isso, é justo afirmar que nasce na arte veneziana uma tradição de pintura expressiva, visceral e delirante, cujo meio é a materialidade da cor. É no fio dessa tradição que se inscreve a obra de Maya Weishof.

A origem da pintura de Maya Weishof é a cor, e é à cor que ela se destina. Não há figura sua que não seja feita de cor, assim como não há espaço vazio que não seja preenchido por ondas multicoloridas. É pela cor que se destrava a espiral de seu olhar: não há limites, não existe pureza, e linhas retas são rigorosamente profanadas, com a segurança de quem confia na energia de seus pincéis. No fundo da cor, encontram-se figuras humanas, de onde tudo se irradia e para onde tudo converge, sempre por meio da cor. É nela que se elabora, com muito cuidado, a imprecisão cíclica de seu universo: é ali, onde tudo pode ser e nada é de verdade, que surgem signos de vitalidade, êxtase e meditação. Em cada rastro, em cada gesto, em cada naco de tinta acumulada, a pintura recoloca uma série de perguntas a respeito de sua existência: o que sou? De que sou feita? O que mostro? Mais do que simples exercício de metalinguagem, essas são questões interiores à própria pintura, que atingem a natureza do que ela é, e não do que ela representa. Assim, a pintura renuncia a qualquer esforço de mimese para se construir como linguagem, como um repertório infinito de códigos intraduzíveis, irreprodutíveis e inenarráveis. A pintura é o que ela é.

 

II.

Tumba do mergulhador é o nome de uma série de sete pinturas antigas cuja peça mais conhecida é um afresco representando um homem nu, de braços e pernas esticadas, lançando-se em um lago. É daí que Maya Weishof extrai a figura central de Voando às cegas. Essa obra tem o poder de aguçar nossa percepção do afresco etrusco ao enfatizar nele sua iconografia associada à mecânica dos fluidos. Na língua de Roma, “urinarius”, derivação do prefixo indo-europeu “wódr̥”, evoca a ideia de alagamento, de pântano, de chuva constante. O verbo “urinari”, por sua vez, designa o ato de mergulhar ou nadar sob a água. A capacidade do mergulhador, “urinator”, de desafiar a tensão superficial dos fluidos e vencer a resistência de sua matéria viscosa, encontra, na pintura de Maya Weishof, júbilo e gozo. Esse universo líquido, de corpos impermanentes e sem esqueleto, que preenchem qualquer brecha ou interstício, instiga a artista tanto quanto o estado transicional do mergulhador, entre o alto e o baixo, entre a vida e a morte: é esse estado de imprecisão, de “quasidade”, que nutre seu interesse pelas imagens incoativas, manifestadas em sua predileção pelos crepúsculos e auroras, quando a noite já não é mais tão escura e o dia não é mais tão claro.

O mergulhador de Voando às cegas restaura também, de sua referência arqueológica, a força psíquica do medo da morte e do fim do mundo. Afinal, o mergulhador é a forma simbólica da ponte entre o aqui e o além, figura de comunicação entre dois mundos: um que existe de olhos abertos e outro que existe de olhos fechados. Isso é o que acontece em Quem tem Sol nunca tem noite, obra que recupera o temor de ver o Sol desaparecer para sempre no horizonte, transformando o sonho em massa volúmica na qual as imagens se reorganizam sem qualquer compromisso com o real. Nessa obra, uma figura feminina adormecida sonha com o fim do mundo. Eis que surgem figuras do Juízo Final emoldurando uma janela onde o Sol se apresenta em sua máxima ambiguidade. As figuras comprimidas de Michelangelo, que se preocupava muito menos com a subjetividade de seus personagens do que com o pathos de suas emoções, traduzem, de um lado, a natureza do sonho da moça, perseguida pelo drama apocalíptico, e, de outro, a natureza do problema da artista, perseguida pela história da pintura. Por isso mesmo é que ela dispensa os jogos de claro-escuro e renuncia às fórmulas surrealistas. A noite, como privação da visão, é problema de pintura que se resolve no enfrentamento direto entre artista e obra.

 

III.

Em uma passagem conhecida de seus Ensaios, Michel de Montaigne escreve que o pintor escolhe “o melhor lugar e o espaço de cada parede para colocar seu quadro elaborado com todo o seu talento. Depois, ele preenche a área ao redor com ‘grotescas’, que são pinturas fantásticas, sem qualquer outro mérito senão a variedade e da estranheza [...], coberta de membros diversos, sem forma determinada, e cujo arranjo, ordem e proporções não são mais do que um fruto do acaso”. O mesmo poderia ser dito das pinturas de Maya Weishof: a indeterminação das figuras, a obstrução dos planos, a cisão completa da função referencial do traço, a ausência de demarcadores fixos do tempo, a pluralidade dos temas, o esfacelamento da narrativa linear – tudo em sua obra parece querer enfatizar não as formas, mas a relação entre as formas; não os limites, mas o transbordamento dos limites, conduzindo-nos à implosão das grandes histórias e ao apogeu do ornamento. Não resta duvidas, ao olhar suas pinturas, de que a grotesca é seu melhor antídoto contra o horror vacui. O que antes era borda, moldura, excesso, agora é substância, matéria-prima da pintura, espaço privilegiado de reflexão sobre as coisas triviais e mundanas que preenchem as lacunas da vida. Pois só os ornamentos oferecem a possibilidade de remontagem dos cacos da história em um lugar em que o delírio e a força libidinal superam a razão como prerrogativa de enfrentamento do mundo.

Na obra de Maya Weishof, a cor, componente irredutível da representação, serve ao ornamento como as letras servem à língua. É dela que tira proveito a força germinativa do vegetal, de onde emergem símbolos e enigmas, e se encontra, em sua pintura, com as curvas sinuosas das entranhas aparentes. Sua força erótica parece atribuível a uma fonte misteriosa, invisível, irrepresentável, transcendental, que se encontra no interior do corpo e dele emana como forma desprovida de nitidez e funcionalidade. No ornamento, as coisas se dobram, dando origem a caminhos labirínticos que capturam o olhar. Assim ocorre com sua pintura, quando repentinamente nos damos conta de que na extensão da figura estamos nós.