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2019
Minha voz é flecha ardente nos catimbós que vivem aqui
Por
Viviane Vazzi Pedro

Peças mitológicas, arquetípicas, identitárias, místicas e históricas de personagens e povos diversos, que se juntam no plano metafísico e, nas obras de Thiago Martins de Melo, formam um quebra-cabeça de narrativas, dispostas em vários graus, relevos e camadas pictóricas carregadas de simbologia. Thiago vale-se dessa diversidade de técnicas para articular os conteúdos, criando planos de leitura inconscientes, como quem procura dar vida a uma pintura cada vez mais carnal, situada na fronteira entre bi e tridimensionalidade.

Em suas obras, Thiago tem reforçado o que o curador e crítico Gunnar Kvaran identificou como capacidade de “reinvenção da estrutura narrativa no universo da pintura”, algo que me parece ressignificar, também no conteúdo, o próprio uso e alcance conceitual dos tradicionais termos “antropofagia” e “canibalismo”.

Desde as primeiras séries, “O ciclo do cão” e “Tricéfalo em catarse”, Thiago expressa seu apetite canibalista pelas instituições e valores, realizando transgressões, uma devoração que os mastiga e recria como crítica – política, social e psicológica – antes de digeri-los ou excretá-los.

Nos autorretratos, Thiago transferia experiências literais para o seu corpo, colocava-se no lugar de outros, reinventava metáforas espirituais e arquetípicas, percorrendo caminhos e paisagens tão sublimes quanto inóspitos: “Ao me retratar junto com indígenas ou mestiços, eu me sinto como se estivesse pintando, ao mesmo tempo, meus amigos e a mim mesmo. O Estado, para todos nós, não condiz com os nossos valores”, explica.

Em seus primeiros trabalhos, o desejo, a libido e o encontro com a potência feminina parecem substituir o sentido da Paixão de Cristo. A “heresia” que isso representa socialmente alimenta o intuito de Thiago de questionar, triturar para despejar, como excrementos, o poder político autoritário, a crença monoteísta e o machismo de um “pai” inquisidor e castrador, cujas leis ameaçam a fusão carnal entre anima e animus.

O sexo e o êxtase amoroso conduzem à conjunção sagrada, ao rito transformador e transcendental. Inicialmente, esses sentimentos assumiam o embate contra as rígidas estruturas familiares, heranças, tradições morais tidas como civilizadas, religiões eurocêntricas, fundamentos do Estado e códigos de comportamento padronizados. Aos poucos, esse embate se espalhou para outras leituras do mundo.

Thiago Martins de Melo sempre se interessou por signos herméticos, por cosmogonias (especialmente a dos orixás) e pela diversidade de manifestações daquilo que chamamos de espiritualidade. Como amiga e ex-mulher do artista, pude testemunhar a influência que várias obras receberam de reflexões geradas pelo contato com guias e protetores espirituais, pelo Tarô de Marselha e por elementos que apareciam em sonhos. Às vezes, consigo estabelecer uma relação psicológica entre os eventos, rumos e crises marcantes na vida de Thiago e a produção de suas obras. Percebo, por exemplo, a influência do tarô na jornada dos seus personagens e na construção de narrativas, as quais são adaptadas e representadas segundo as metáforas pessoais de Thiago. Em trabalhos como xviii A lua, xv O diabo e vii O carro [pp. 207, 208, 209], a correspondência com os arcanos do tarô é direta e imediata. Mas, na maioria das vezes, o que me chama atenção é o fato de que essa inter-relação se dá de forma indireta, vestida de elementos barrocos e anti-hegemônicos do imaginário do artista, como é o caso, mais literalmente, da obra A Torre, ou a hora do galo impede o olho por olho [p. 133].

Os ciclos de morte, vida e renascimento presentes nas obras se relacionam às descrições das jornadas arquetípicas do tarô. Vejo correspondência entre personagens, por exemplo, entre A Íris fodida [p. 235] e “A Força – arcano xi”. E essa inter-relação também parece estar presente nas narrativas complexas, como na obra Psicopompos manguezal – para Tereza Légua e Tunga [p. 92], no qual estão presentes arcanos como “A Papisa – ii”, “O Louco – 0 ou xxii”, “A Lua – xviii”, “A Morte” e “O Mago – i”.

Na obra vii: O carro vemos uma releitura do arcano, na qual está representado o próprio artista, que procura dirigir forças emocionais opostas em uma guerra interior para guiar seu caminho voltado à expressão de sua vontade. Esforço para ter domínio e manter o equilíbrio entre dualidades e controlar seus instintos. Vemos uma espécie de carro ou carruagem que, embora tenha motor, é guiado por dois javalis, que correm em direções opostas. No xamanismo, o javali representa um ser que usa uma máscara amedrontadora para buscar, com vigor e coragem, a sua verdade. Para tanto, possui expressividade, inteligência, capacidade de pressentir o perigo e de se proteger. O desafio é controlar o ímpeto desses javalis em direções opostas. Um galo anuncia para o despertar, a consciência; a força do cavalo acentua a potência da escolha. É preciso ter motivação e autodomínio para guiar esse carro de pulsão de desejos. Ao mesmo tempo, é necessário direcionar esses javalis para servirem às escolhas desse homem, para que ele tenha a liberdade plena, não sendo dominado ou paralisado por esses animais.

Outra reencenação de arcano do tarô encontra-se na obra xv O diabo. Na pintura de ambiente sombrio estão representados os excessos da ambição material, sobretudo, pelo corpo, sexo e dominação dos prazeres. Os morcegos e urubus anunciam o risco da morte, da ruína, a necessidade de renascer para a luz e enfrentar as situações perigosas. O casal acorrentado representa tanto prisioneiros como possíveis colaboradores da energia materialista do diabo.

O arcano xvi do Tarô de Marselha, conhecido como “A Torre” ou “A Casa de Deus”, também é uma referência para o quadro A Torre, ou a hora do galo impede o olho por olho. A luz não vem do céu, mas do incêndio que destrói a capela e a figura do político coronel e autoritário que nela habitava. A falta é castigada em nome dos princípios de causa e efeito presentes no arcano do tarô conhecido como “A Justiça”. Quem anuncia o momento da queda e da ruína das estruturas é um galo, que pousa sobre os ombros da história de uma negra e de Anastácia, como em um totem de memória e ancestralidade da luta. Esse momento, de despertar e renovação, anuncia o efeito arquetípico de dois arcanos sobre essa jornada de luta: do “Julgamento” (arcano xx) e da “Torre” (arcano xvi). No topo do totem, encontram-se entidades espirituais e um negro com expressão revolucionária. Ao lado, celebram a vitória, em comunhão de ideais, as entidades espirituais caboclas e indígenas. Os olhos feridos do negro, do índio e do branco são conectados na hora desse juízo final. Porém, embora esperada e festejada por guias espirituais, a Justiça não vem do céu, é feita pelos homens, com ferro e fogo. Com a “Torre”, aquilo que não tinha base sólida desaba, o que não estava em consonância com a lei universal deve ser destruído para gerar a redenção. Tudo será recriado sob novas bases da “Casa de Deus”. O totem das pessoas, próximo aos céus, é mantido. Ao devorar estruturas, Thiago nos torna expectadores das paixões e, também, de suas narrativas justiceiras contra as atrocidades, formas de escravidão, ambição desmedida e controle da natureza, opressão e morte cometidas em nome do que lhe parece fundamentos cruéis e rançosos. O canibalismo de Thiago também parecem buscar uma quintessência de Deus, por meio da devoração do corpo e da entidade moral da deidade monoteísta. Por meio disso, ele se faz senhor de sua própria ética redentora da diversidade de expressões morais e psicológicas.

A fome de Thiago se estendeu para além das instituições e valores que castravam o seu próprio mundo. Olhou o universo a partir da complexa janela do seu ateliê, em São Luís, na Amazônia Legal maranhense. Dali, começou a enxergar questões que parecem ser locais, mas são reflexos do trator homogeneizante da globalização. Nas lutas contra esse trator, as dimensões global e local se interconectam, reforçam significados e características da região.

O preconceito contra saberes, crenças e cosmogonias leva Thiago a perguntar, em um dos primeiros trabalhos da série “Teatro nagô cartesiano”: Qual o lugar da alma no corpo? Ela estaria situada na glândula pineal, conforme defende o racionalismo cartesiano? Ou na região da nuca, como afirma a cosmogonia nagô? Como compreender a psiquê e a alma? Qual seria a geografia física da alma de diferentes povos? E como isso se traduz nas visões de mundo?

Essas questões levam Thiago a buscar conexões arquetípicas em tudo e, por meio dos signos híbridos e expressões sincréticas, aglutinar sistemas mais amplos de cosmogonias africanas, ameríndias, caribenhas, hindus, anglo-americanas e latinas, entre outras. Entretanto, isso o coloca diante de outro problema: como representar, por exemplo, a imagem atual do índio, do quilombola, do caboclo, do “não branco” ou do “branco pobre”, ante a idealização em que são retratados desde o século xvii?

Com isso, Thiago Martins de Melo acessa, intuitivamente, problemas que desafiam a antropologia e o pensamento social do Brasil e do mundo. A angústia da luta identitária de povos que reivindicam o reconhecimento, os tantos significados do território, desterritorialização e reterritorialização, os deslizamentos que, por vezes, unem ou negam a aglutinação cultural, sincretismo e mestiçagem. Entretanto, é da arte, do desejo e do sentir de Thiago que emergem suas verdades. Muito além de qualquer teoria ou politização, ele se pauta pelo afeto e pelo respeito à construção da imagem.

As formas de expressão chegam como aliadas para os “altares”, “ebós” ou “oferendas” – imagéticos e energéticos – realizados por Thiago. Assim como acontece com os diversos povos tradicionais, indígenas e quilombolas, para a defesa do seu território de criação e para o apoio da sua contestação político-libertária, Thiago invoca seus orixás, guias e entidades pessoais. As próprias obras trazem, muitas vezes, homenagens, ou “obrigações”, declaradamente prestadas aos seres espirituais que nutrem o fazer e lutar do artista, como Ogum (orixá), dona Tereza Légua Boji Buá, senhor Joaquim da Cachoeira (da mina) e tantos outros.

A pintura parece-me promover um ritual de alteridade entre expectadores (muitos deles brancos), pintor e personagens. Nesse ritual, tanto o artista quanto suas obras e expectadores podem atuar como “cavalos de santo” de entidades ou personagens, encarnando sentimentos, reverências e o reconhecimento de figuras, cuja expressão na sociedade, normalmente, é marcada por preconceitos, condenação, intolerância e violência.

O retrato e a presentificação de figuras sábias como pretos-velhos, por exemplo, não deixam calar a memória da escravidão e nos fazem refletir sobre a sua continuidade de tantas e novas formas. As pombas-giras, que bailam com o público nas obras do artista, apontam para o fato de que, em tempos contemporâneos, mulheres ainda são execradas, oprimidas, julgadas e violentadas por reivindicarem a liberdade sobre seu corpo, amores, trabalho, futuro e pensamento. O caboclo Tupinambá invoca a força da mata para ser reconhecido como caboclo amazônico e como indígena tupinambá, sem que uma identidade anule a outra, e sem que sua existência seja apartada da natureza. O Exu, temido como demônio, condenado ao desamor pelas religiões ocidentais europeias, nos faz indagar sobre a execução social ou condenação perpétua cometidas em nome do medo do diverso ou do racismo. Exu nos lembra, também, de nossos instintos renegados, da necessidade do gozo, das entranhas da dor e do submundo inconsciente. Ao ser festejado ou celebrado em ritual pelo “branco civilizado”, Exu liberta-nos e liberta-se reciprocamente “do pecado” para a dança, a irreverência, os prazeres da bebida, do fumo, do sexo e da dominação material.

A obra Martírio [pp. 138-41], exibida na 31ª. Bienal de São Paulo, é exemplo dessa lógica. Nela, os caboclos sagrados da umbanda e tambor de mina, que amparam as lutas dos heróis anônimos, como Sete Flechas e Ubirajara, são retratados tal como conhecidos em seus altares, com o cocar do índio apache americano. Thiago explica: “Eu vou, sim, colocar o cocar de índio norte-americano no Ubirajara e no Sete Flechas. Para representá-los como os amigos caboclos, preciso utilizar a iconografia de origem colonialista que marca sua representação, porque é com esta que me familiarizei, é esta que é conhecida como signo de poder pela umbanda e mina e que me motiva a pintar. Além disso, eles [caboclos] querem ser homenageados e representados da maneira em que são. É isso que conduz ao afeto”.

As personagens retratadas pelo artista – que muitas vezes têm as faces identificadas como “maranhenses” ou “amazônicas”, irreconhecíveis pelo resto do Brasil e do mundo –, são exemplificativas; representam pessoas universais, envolvidas em situações de resistência global. Os combatentes são indivíduos e grupos que reivindicam o reconhecimento do direito à identidade e da diferença dos seus modos de vida, a partir da experiência interrogativa, da necessidade de defesa do território, do enfrentamento à discriminação e da negação político-jurídica. Reivindicam a significação da diferença cultural e, por isso, representam um pensamento decolonial. Politicamente, denunciam os abusos do exercício do poder pelas agências governamentais e, no plano econômico, questionam as contradições do modelo desenvolvimentista e as formas de integração aos circuitos do capital mundial.

Para tentar ilustrar as conexões entre a narrativa pictórica realizada pelo artista e os fragmentos complexos, inspiradores e presentes no seu cotidiano, gostaria de contar a seguir uma história real, com ressonância presente.

Década de 1960, construção do Porto do Itaqui na famosa Baía de São Marcos, a segunda mais profunda do mundo, em São Luís do Maranhão. Para alguns, uma baía com “vocação econômica natural”, patrimônio da exportação. Para os que vivem, trabalham e constroem seus sonhos na região: morada de encantados, como dom Sebastião, com terra e águas guardadas pela princesa Ina, sua filha. Morada eterna de Gonçalves Dias, poeta que ali naufragou, em 1864, segurando Os timbiras. Terra vocacionada a ser lar e local de trabalho de centenas de famílias tradicionais, que vivem da terra, dos mares, do mangue, em relações de mútua cooperação. Populações que, por sua diferença reivindicada, são chamadas de atrasadas ou culpadas por barrar o “desenvolvimento da nação”.

A construção do primeiro píer do Porto do Itaqui, na década de 1970, parecia amaldiçoada pelos encantados. O mar vomitava cada edificação erguida pelos governos. As empresas, temendo os crescentes acidentes com operários e naufrágios, assim como os trabalhadores, espantam-se com as assombrações noturnas do navio de dom Sebastião. Era preciso conter o repúdio, agradar à princesa Ina, convencer as comunidades de que o projeto traria o “desenvolvimento” e de que um futuro bolo econômico cresceria e seria, um dia, repartido, caso as populações locais sacrificassem suas terras e vidas em nome do porto. Para ritualizar o sacrifício, o governo do Estado convoca as comunidades e terreiros para uma grande homenagem à Ina, com a intenção de que esta abençoe o porto. Tambores tocam. Pescadores, famílias de camponeses, marisqueiras, quilombolas e catadores de caranguejo dançam com os representantes do governo, pedindo a benção ao “desenvolvimento” simbolizado pelo porto. Esperanças são iludidas. Coincidência ou não, o projeto se consuma, e hoje o porto abocanha, crescentemente faminto, as comunidades, seus territórios e a natureza, que ali resistem por não acreditarem mais no apregoado “desenvolvimento”.

Entre 2014 e início de 2017, um novo porto tenta se instalar na mesma Baía de São Marcos, sem licença nem autorização judicial, passando com o trator sobre as casas de moradores do povoado de Cajueiro, na capital São Luís. Em poucas horas, 21 casas são derrubadas entre o Natal e Ano-Novo. As dezenas de comunidades rurais da Ilha do Maranhão se revoltam, sentem na pele a mesma agressão e desonra; congregam-se na luta pelo Cajueiro e pela defesa de seus territórios. Como repertório, tocam os tambores na frente do Palácio do Governo do Estado. Agora, em plena capital de Estado brasileiro, camponeses, pescadores, marisqueiras, indígenas e quilombolas ressuscitam e reformulam um cântico indígena usado contra os colonizadores para a defesa da comunidade do Cajueiro. Com isso, os políticos, grileiros e empresários arrepiam-se com o brado: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não assanha o Cajueiro”! O confronto evoca o sagrado: a terra é nossa! É de quem aqui trabalha e vive! Não mexam conosco, aqui está o Terreiro do Egito. Aqui vive a princesa Ina, enfurecida por ter sido enganada. Tradições diversas, reunidas pela mesma dor de serem as comunidades escolhidas como sacrificadas por “projetos desenvolvimentistas”, dando-se às mãos numa luta à qual se referem como “a de Davi contra Golias”.

No caso do conflito socioambiental, o Terreiro do Egito e seus encantados, rei dom Sebastião e princesa Ina viram atores do confronto político. O terreiro, fundado em 1864 e extinto no dia 14 de dezembro de 1980, é um dos mais antigos do Brasil e notório pelos praticantes das religiões de matriz africana. Nesse lugar, símbolo de resistência centenária, ainda habitam as entidades e encantados que são ali festejados e recebem homenagens em várias épocas do ano. Nos dias de festa, segundo relatos dos moradores locais, avista-se o navio do rei dom Sebastião. Pai Euclides, um recém-falecido pai-de-santo maranhense, responsável até 2015 pela prestigiosa Casa Fanti Ashanti, também contava que o Morro e Terreiro do Egito, em Cajueiro, servia de nova morada e “até de quilombo. Alguns negros que vinham fugidos de Cururupu, Guimarães, passavam por lá embarcados […] tinha muito nêgo que se jogava no mar, por conta da opressão, de não querer se submeter a essa coisa toda”.

Assim, o Terreiro do Egito não era apenas a moradia de encantados mas local de “invenção da liberdade”. É nesse sentido que a história do Terreiro do Egito e de sua responsável, dona Maria Pia, misturam-se: “Maria chegou da África como escrava pequena no bracinho da mãe dela […] Pegou a conhecer a vida já de sete anos pra cá. Começou a fiar a rede no tear mais a mãe dela, a fazer as coisas que o branco mandava. Até quando inventou a liberdade”.

Thiago busca também “tecer” os signos e memórias e “inventar a liberdade” dentro de seu espaço artístico particular. Tudo parece comandado pelo elemental do fogo e por um ímpeto transformador, que destrói para recriar. Ruptura comandada pelo arcano da “Morte” do tarô, pela espada de Ogum, pelo martelo de Nietzsche, pelo fogo tocado pelo negro, pelo escancarado poder feminino da pomba-gira, pela flecha do indígena. Fé de que a destruição da “Torre” redireciona um “Carro” de forças impetuosas, como as do destino, o senhor da “Roda da Fortuna”, fazendo o infinito renascer do “Mundo”. Vida e morte representados pela fertilidade do mangue. A santa loucura das paixões, o inferno dos prazeres guardado por Cérbero, o cão de três cabeças; a perfeição arquetípica da figura alquímica da Rébis (macho e fêmea fundidos para ressignificar os gêneros); o questionamento ao cartesianismo, a mitologia hindu, indígena, iourubá; os tetos de estruturas rígidas de igrejas e casas arrebentados; as correntes que se arrastam reivindicando a memória de heróis anônimos e escravos; a aranha Anansi recontando, à sua forma, as histórias dos negros; a cruz que sodomiza e violenta; o nascimento do mestiço redentor...

Das obras, eu ouço tambores no inconsciente, como um sopro presente no Juízo Final do “Julgamento”. Em alguns combates, as personagens tomam emprestados, como suas armas, signos sincréticos de outros. Em outras batalhas, as personagens simplesmente não aceitam miscigenações, hibridismos ou camuflagens, admitem tão somente os signos que representam sua autoestima, deixando claro: “Um caboclo não é serafim”.

O sentido das narrativas do artista é revelado por um “inconsciente ótico e pulsional”. O entrelaçamento das representações imagéticas do corpo, do trabalho e seus títulos nos fornece valiosas chaves para leitura. Entretanto, na maior parte das vezes, não é possível uma compreensão completa, imediata ou apressada das obras. Seus elementos complexos e significantes parecem chegar depois, operam no plano da memória, do inconsciente, do imaginário, dos insights, de revelações, esquecimentos ou preconceitos que advêm de uma memória reprimida de histórias que são nossas, da humanidade.

Como previsto nos princípios de magia, os acontecimentos das narrativas e seus signos ecoam nas diversas dimensões, tempos e espaços, surtindo efeitos energéticos, manifestando-se com sincronicidades e propagações nem sempre sequenciadas. O ebó pictórico ou processo artístico ritual de Thiago tem a força mágica da alquimia, da cura e dos tambores de mina e da umbanda, dos cânticos que dão impulso aos trabalhos forçados e monótonos. As pinturas têm ainda a rebeldia e a resistência cotidiana dos povos, por meio da feitiçaria contra o colono, do rogar de pragas ao sinhô, do envenenamento de capitães do mato, historicamente empregados como resistência por negros escravizados, indígenas e, até mesmo, camponeses da Amazônia contemporânea, contra os senhorzinhos e coronéis.

Como descreve e vivencia Jung em seu livro vermelho, ao entrar em contato com o signo, Thiago parece acessar o mundo, talvez em uma experiência artístico-social visionária de nossos tempos.

Pergunto-me, por exemplo, se, ao pintar com meses de antecedência as ocupações com barricadas das marquises do Congresso Nacional brasileiro, a invasão da “lama preta” aos povoados e ao tratar, em anos anteriores, do desastre das “feridas do ferro sujo” [pp. 108-09] causado pela mineração, estaria o artista conectado a uma espécie de Neuromancer? Adentraria, via signo, um ciberespaço quase físico, espécie de matriz programada na qual se vislumbram as causas e efeitos dos acontecimentos? Ou teria acesso às imagens presentes no mundo das ideias, de Platão, no qual os fenômenos idealmente se replicariam, com as distorções da realidade, em nosso universo físico? Anteciparia, à frente de nossos tempos, as batalhas que nos aguardam? Questiono, ainda: será que tem mesmo sentido a crença de Thiago (alquímica) de que seu ebó pictórico traria para baixo (para o mundo físico) o que já está acima (no mundo espiritual) e vice-versa? 

A meu ver, Thiago, acima de tudo, tem consciência de que o signo tem poder e faz dele sua “pajelança artística”. Junta-se aos seus caboclos, orixás e guias, com o mesmo ímpeto justiceiro: “Se me der a folha certa e eu cantar como aprendi, vou livrar a terra inteira de tudo o que é ruim”. 

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Referências Bibliográficas

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