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2023
No Paraíso perdido
Por
Antonio Gonçalves Filho

Uma jovem pintora contemporânea que busca no passado imagens que possam refletir o presente e antecipar o futuro. De modo resumido, seria uma definição possível para Maya Weishof, artista curitibana de 30 anos representada pela Millan desde julho de 2021. Pinturas recentes, por exemplo, buscam num retábulo do pintor flamengo Marten de Vos (1532-1602) as imagens apocalípticas do Juízo Final não para reafirmar as alegorias do maneirista, mas para desconstruir mitos. Ou, como diz a artista, para “escapar de uma narrativa linear ou fechada em si mesma”. É o caso do referido retábulo do convento de Santo Agostinho (1570), de Marten de Vos, que hoje integra o acervo do Museu de Belas Artes de Sevilha.

Marten de Vos não era exatamente um inovador. Sua pintura deve muito a Veronese e Tintoretto, este último uma referência maior e constante nas pinturas da artista brasileira, carregadas de erotismo e de uma intensidade cromática que traduzem a natureza voluptuosa da pintura. Curiosamente, no caso de Maya Weishof, ela nasce do projeto racional do desenho, de uma tentativa de transposição de mitos apocalípticos para a tela, o que explica sua fixação em corpos retorcidos e em queda vertiginosa, associados tanto ao Juízo Final como ao êxtase místico e erótico.

A construção da imagem, no caso de Maya, sempre vem pelo excesso. Há, evidentemente, um olhar barroco por trás dessas grandes telas que reproduzem fragmentos de batalhas épicas. Nessa ‘collage’ pictórica, feita de imagens de obras de arte do passado, as cenas infernais acabam prevalecendo por uma única razão: elas são mais “vibrantes” que qualquer possível cenário do paraíso, justifica a pintora.

O maneirista Tintoretto (1518-1594), não por acaso chamado de Il Furioso, prenunciou os “excessos” do Barroco ao abusar dos efeitos ilusionistas para sugerir o confronto entre luz e sombras. É também o que faz Maya Weishof, o que distingue a pintora de seus contemporâneos. Ao retomar o maneirismo após a conquista do abstracionismo, Maya não o faz por nostalgia, mas para ampliar o repertório de uma escola identificada com a quebra do monopólio da beleza pelo estilo clássico.

Maya tampouco faz paródia da história da arte, seja antiga ou moderna, mas, antes, presta tributo aos mestres que possibilitaram a evolução da pintura. Ela retrocede no tempo para mostrar que as cores fortes e contrastantes de um Tintoretto (em Paraíso, no Museu do Louvre, por exemplo) anunciavam o caminho para a abstração muito antes da invenção do termo.

Outro exemplo dessa ligação com a história da arte de tempos imemoriais é uma tela gigantesca de Maya que retrata uma estranha mulher num cavalo negro. Próxima da narrativa mitológica do barroco Guido Reni sobre o nascimento da aurora, essa pintura da artista brasileira se apropria de fragmentos de figuras infernais de um afresco com o Juízo Final pintado no século 14 que integra o acervo da Pinacoteca de Bolonha.

 Obviamente, não se pode esperar que uma artista de hoje tenha a mesma percepção dos contemporâneos do Maestro della Crocifissione, autor do afresco de Bolonha (San Giacomo alla Battaglia di Clavijo, 1315/20 ), ou qualquer outro pintor do passado. Ela recicla essas imagens como pretexto para pintar o cavalo branco de San Giacomo, trocando sua cor (em Maya, ele é um corcel negro). 

Esse procedimento pode envolver tanto os barrocos como um belga do século passado, James Ensor (1840-1949), ligado ao simbolismo e ao surrealismo. O uso de máscaras em personagens sem identidade é frequente numa obra que não dispensa, igualmente, as mesmas fontes (os velhos mestres flamengos como Bosch, para ficar num único nome) e tem fortes raízes no expressionismo alemão. Maya, enfim, é uma enciclopédia que, à maneira de Diderot, não pretende esgotar a história da pintura, mas incorporar seu espírito e transformar sua natureza.