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2022
O fim continua: intervalos e continuações na obra de Tatiana Blass
Por
Camila Bechelany

Arte é interseção de pessoas, imagens e objetos no mundo. Nessa interseção, ao ativar tempo e espaço, a arte possibilita o encontro do espectador com a história pessoal e coletiva, acionando uma série de mecanismos sensíveis. E é nesse instante mesmo que a arte se torna mais revolucionária, quando toca afetos, memórias e sensações. O sujeito que vê é o sujeito que sente e que se arrisca a perder suas certezas, a saber que algo lhe falta. “Quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí. [...] Coisas a ver de longe e a tocar de perto, coisas que se quer ou que não se podem acariciar. Obstáculos, mas também coisas de onde sair e onde reentrar. Ou seja, volumes dotados de vazios.” [1]

O encontro com a obra de Tatiana Blass nos leva a um lugar de risco, onde a certeza nos escapa. Há um movimento dúbio de apagamento e revelação, de construção e desconstrução, de intervalo e continuidade que nos faz duvidar do que realmente se passa diante de nós. Em uma perspectiva ampla, o trabalho mais recente da artista parece querer lidar com uma leitura e uma reflexão recorrentes a respeito do tempo, criando materialidades para um elemento ocultado, que aparece tanto em suas pinturas quanto nas obras tridimensionais.

A produção de Tatiana Blass é marcada pela prática constante da pintura e por um experimentalismo em torno da matéria: desde a utilização de diferentes tintas (guache, acrílica, óleo, esmalte sintético) – em suportes variados, como tela, papel e vidro – até a dilatação da pintura no espaço tridimensional a partir de diversos tipos de materiais, tais como a parafina, o latão, a cerâmica, objetos encontrados, entre outros. Portanto, trata-se de um universo material amplo. Seja a obra uma escultura, um objeto, uma instalação ou um vídeo, ela é sempre atravessada pela problematização pictórica – que evidencia questões de volume, enquadramento e encaixe – e pela presença da linha na composição.

As pinturas das séries Os sentados, iniciada em 2019, e Os de pé, iniciada em 2022, parecem atrair o olhar para dentro de um espaço construído que se assemelha a uma boca de cena ou a um picadeiro de circo, em que figuras humanas aparecem dispostas em relação a outros elementos, como cadeiras e mesas. As obras partem de imagens recolhidas em fotografias e registros de peças de teatro, que servem como uma primeira referência para a composição. Essas pinturas se constroem pela sobreposição de camadas de cores impuras, de tonalidades que vão principalmente do verde-acinzentado ao azul e do marrom-avermelhado ao amarelo. Da mesma forma que em pinturas anteriores, como nas séries intituladas Entrevista (2013) e De costas / Teatro (2014), a fatura dos trabalhos emprega uma tinta pouco espessa e bastante diluída, que deixa vestígios e dá um ar enigmático ao quadro.

Nessas pinturas, o ponto de vista é único, pois o acontecimento é retratado em determinado instante, o que lhes confere uma unidade temporal, como na fotografia. O tempo é o presente, mas essas imagens guardam uma espécie de memória pela presença dos campos de cor que se sobrepõem às figuras. Esses campos orientam a construção material do trabalho no sentido de encontrar intuitivamente certo acordo cromático para a composição. Eles não são meros espaços ou intervalos, mas tentativas de preencher um buraco que sugere alguma emoção na pintura. Por vezes as cabeças e torsos se tornam nada mais que formas circulares e ovaladas, ao passo que uma cadeira pode ser entrevista a partir de uma única linha vertical que representa um pé. Essas formas ovaladas aparecem em outros trabalhos mais antigos da artista, notadamente em suas colagens. Outra característica dessas imagens é que nelas se veem linhas horizontais e verticais – frestas, fendas e fissuras –, “linhas orgânicas”, como aberturas de luz que revelam continuidades e descontinuidades entre campos de cores. Neste sentido, a linha orgânica se caracteriza, como em Lygia Clark, “por ser o espaço preposicional entre; é o vazio que articula o discurso planar da cor; é o lugar do ar que respiramos que integra e articula as zonas concretas da pintura”. [2]

A primeira vez que a artista experimentou levar a pintura ao espaço tridimensional foi com Atavio, de 2004, instalação realizada no Espaço 397, em São Paulo. Na ocasião, Tatiana Blass cobriu com Paviflex cor-de-rosa e azul parte do piso de cimento acinzentado do espaço, formando campos de cor com bordas arredondadas, de aparência macia, dando a impressão de que um grande volume de tinta havia sido derramado ali. Uma ilusão. Em algumas partes do piso colorido havia semicírculos vazados, buracos, como se a tinta tivesse sido contida por algo rígido. Assim como em Os sentados, formas geométricas arredondadas se alternavam com os elementos figurativos do trabalho – vasos de planta, portas, degraus, elementos do próprio ambiente –, criando estranhamento. Em outras colagens e pinturas do mesmo período, blocos de cor são organizados de forma mais ou menos sobreposta, mas deixando sempre algum intervalo no plano do quadro. Esses espaços vazios são, ocasionalmente, o próprio fundo da obra, ou então são distâncias entre as formas geométricas, sugerindo paisagens montanhosas ou nuvens em movimento no céu. Já no conjunto de esculturas da obra Cauda, de 2005, as massas de cor revestem objetos no piso do espaço expositivo. Cores sólidas e brilhantes cobrem parte do objeto escultórico, dando a impressão de tratar-se de um líquido viscoso que escorre por um volume esférico. As massas de cor parecem macias, mas em um olhar mais atento notamos que são rígidas e sólidas. Mais uma ilusão bem- humorada criada pela artista.

A ideia de algo que inunda, escorre ou extravasa se repete em muitos outros trabalhos. Em Pintura que derrete, de 2022, a imagem pintada com tinta e cera sobre o metal se desfaz lentamente a partir de um mecanismo simples de condução de calor. Ao ser conectada ao circuito elétrico da galeria, a chapa, que é a base sobre a qual se aplicaram as tintas, se aquece e aos poucos desfaz a pintura. As cores escorrem criando uma imagem disforme que é nova não apenas para o público, mas também para a artista.

Na escultura Os sentados, de 2022, realizada para o espaço da galeria Millan, há uma figura humana, em cera, sentada e, em seu interior, há uma cadeira de madeira. Acima dela paira um pendente com uma fonte de calor que faz a cera derreter gradativamente, desmanchando parte da figura e revelando a cadeira. Da mesma forma que em trabalhos anteriores, como Vitrine_Boneco sem descanso, de 2018, e Coluna (Agachado), de 2013, a peça se deforma e sobram restos de matéria pelo chão. Ainda nesta chave procedimental está Cera-cerâmica, de 2020, uma ação registrada em vídeo em que uma cabeça de cera e outra de cerâmica se movem pelo calor que a chama de um fogão ligado incide sobre elas. Aqui é necessário distinguir a violência do que está representado (o sensacional, o espetacular) da violência da sensação, pois a arte de Tatiana Blass está longe de ser uma encenação trágica ou cruel. É preciso, então, pensar mais sobre a violência da variabilidade dos estados intensivos e diferenciais da matéria do que a respeito de uma suposta crueldade infligida a um objeto. Ao provocar o desfazimento da forma, seja ela a figura humana ou o espaço da tela de pintura, Blass faz circular as intensidades da matéria viva, ou seja, fluxos, forças, afetos e sensações, num movimento duplo de contenção e extravasamento. “Tatiana Blass penetra o vazio das coisas, a poesia de tudo aquilo que excede, que transborda.” [3]

Há dois movimentos em curso: a liquefação e o extravasamento. O que fica, no final desses trabalhos que lidam com uma matéria que não se contém, é uma cena de fragmentação e de certa desordem, uma espécie de fisicalidade da pintura. Em um texto de 2011 sobre a exposição Fim de partida, o crítico Paulo Venancio Filho diz o seguinte: “Tatiana provoca uma espécie de inversão escultórica: a regressão da escultura à matéria, a remissão ao estado informe. As esculturas, que são os atores e personagens, vão se dissolvendo sob o calor das luzes e o começo se torna o fim. Da cera à cera, do pó ao pó” [4]. A matéria, seja ela tinta, cera, barro ou água, está em transformação, em movimento, por não ser contida.

Em dois trabalhos anteriores – Penélope, de 2011, e Mais dia, menos noite, de 2019 –, a máquina de extravasamento é posta em marcha em uma escala arquitetônica, por uma espécie de invasão do espaço pela cor. Nessas obras, dois edifícios históricos, a Capela do Morumbi, em São Paulo, e o Museu da Pampulha, em Belo Horizonte, são tomados por uma grande mancha vermelha feita de fios de lã, proporcionando a imersão do espectador na matéria macia e provocando uma reversão do espaço. No centro da instalação há um tear de onde sai, de um dos lados, um tapete ainda inacabado. Do outro lado, os fios, que adentram o tear para serem tecidos, pendem para fora e se espalham por chão, paredes e fachadas e tomam a paisagem externa ao prédio, onde fios vermelhos se misturam à vegetação, alterando a cena e criando uma continuidade entre o interior e o exterior.

O conjunto de obras recentes que a artista chamou de O fim continua (2022) também lida com as ideias de contenção e extravasamento, além daquelas de continuidade e descontinuidade. Mangueiras de jardim – normalmente flexíveis, feitas de borracha –, são recriadas em metal e têm as duas extremidades unidas uma à outra, provocando estranhamento, como se se encerrassem em si mesmas. Não por acaso, as esculturas são fabricadas em ferro, um elemento bastante comum no entorno de Belo Horizonte, onde a artista vive há alguns anos. Por conta da presença do metal, a terra naquela região tem uma coloração avermelhada e, em decorrência da intensa atividade de mineração, o pó seco se espalha e deixa a paisagem toda marrom- avermelhada – um fato realmente marcante para quem vive por ali.

As mangueiras de ferro, ao serem fechadas em si mesmas, formam longas fitas de Möbius, com muitas voltas, eliminando a separação entre dentro e fora. Como acontece com frequência na obra de Tatiana Blass, objetos comuns são apartados de sua função primeira, provocando deslocamentos de sentido, a exemplo da série Metade da fala no chão (2008-18). Nessa obra, instrumentos musicais passam por um processo de emudecimento, ou por terem as vias de ampliação do som obstruídas (pelo derramamento de cera que entope a saída de ar e faz cessar a produção de sons) ou graças à subversão de sua configuração original pelo alongamento de suas formas.

A interrupção de algo que deveria acontecer ou a anulação de um item da paisagem, essa espécie de “presença pela falta”, é um elemento comum a todos os trabalhos aqui mencionados e que já marcava outras obras mais antigas, como Páreo. Essa obra de 2006 é uma escultura constituída por quatro patas de cavalo, em tamanho real, que descem uma escadaria. O restante do cavalo em movimento é apenas sugerido, recriado mentalmente pelo espectador. No lugar do corpo, há a paisagem do entorno, como se ele tivesse sido apagado ou interrompido pela paisagem. O animal se faz presente a partir da própria ausência, na medida em que cabe ao espectador imaginá- lo no espaço e construir a imagem por inteiro. Esse tipo de operação pode ser notado ainda em trabalhos posteriores, como Zona Morta, de 2007, e Calçado, de 2018.

Já em Reviravolta (2022) há também uma mangueira de ferro, mas ela se encontra no interior da casa (galeria Millan), vertendo água, que então escorre pelo piso, até o andar inferior da construção, atravessando a arquitetura e marcando o espaço com um rastro de ferrugem. No andar de baixo, as gotas caem sobre uma escultura cuja cabeça de barro cru vai se desfigurando e se deformando gradativamente pela ação da água. Num circuito autofágico, a água consome o barro. Aqui, a obra se modifica no decorrer da exposição e, como ocorre quase sempre no trabalho de Tatiana Blass, o espectador-visitante pode testemunhar apenas parte do processo de transformação, sem jamais ter acesso à imagem por inteiro. 

Nesse sentido, a artista maneja o próprio tempo para assim dizer algo sobre aquilo que nos escapa; ela subverte o espaço arquitetônico como lugar comum ao eu e ao outro, lugar compartilhado, em busca de outras lógicas que alterem a relação entre os sentidos a partir de acontecimentos dinâmicos e singulares. Em “Sede”, um pequeno poema de sua autoria, a artista escreve:

a diferença
entre o lago
e o buraco que a chuva preenche de água é o quanto o solo
cede à água

A palavra “sede” remete a incômodo, insatisfação, necessidade, mas também a desejo e vontade. O lago e o buraco acabam sendo a mesma coisa, ainda que se aproximem, no poema, pela diferença. É uma forma inteligente de abordar a natureza das coisas – o lago um dia foi buraco e pode voltar a sê-lo. O poema é também uma maneira admirável de falar do vazio infinito que habita o sujeito e que é o motor do desejo. Pois toda arte “se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio”.5 É uma forma de se fazer presente pela ausência.

 

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1. Didi-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 10; 34.
2. Bois, Yves-Alain; Herkenhoff, Paulo. Lygia Clark (1920-1988): 100 anos. Tradução Kika Serra. (Catálogo de exposição.) Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2021, p. 85.
3. De Freitas, Douglas. “O labor de Penélope”. (Panfleto de exposição.) São Paulo: Capela do Morumbi, set. 2011.
4. Venancio Filho, Paulo. “Fim de partida”. (Panfleto da exposição.) Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, jan. 2011.
5. Lacan, Jacques. Le Séminaire, livre VII: L’Éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 155.