O abandono de suportes convencionais, a afirmação da subjetividade, a experimentação e o uso de novas tecnologias têm sido identificados, com frequência, como traços distintivos da arte contemporânea. Três grandes artistas veteranas, que passaram pela Millan e que se encontram aqui reunidas na exposição O Legado Experimental (Anna Maria Maiolino, Lygia Pape e Mira Schendel), foram vetores dessa liberdade criativa. E deixaram o caminho aberto para novas gerações, representadas por três artistas também ligadas à galeria e incluídas na mostra (Elena Damiani, Guga Szabzon e Vivian Caccuri), que presta tributo a uma criadora que nos deixou cedo e foi representada, no passado, pela Millan: Flávia Ribeiro, carinhosamente conhecida no meio como Frapê.
Das veteranas citadas, Lygia Pape (1927-2004) e Mira Schendel (1919-1988) já entraram para a eternidade, a exemplo de Frapê (1954-2023), morta em outubro último. Todas têm em comum trabalhos em papel, como é possível atestar nesta mostra com obras de diversos períodos. Elas guardam estreitas relações com as peças das artistas que hoje seguem esses vetores da arte contemporânea, essas mulheres que se tornaram protagonistas da arte experimental nos anos 1970.
Não se deve esquecer que a arte de Maiolino, especialmente em papel, reflete o milieu que a cercava. Seus desenhos/objetos dos anos 1970 têm muito a ver com Mira Schendel e Lygia Pape. Assim o comprovam as monotipias de Mira e as obras em papel japonês de Pape, nome fundamental de um movimento histórico da arte contemporânea brasileira, o neoconcretismo.
Anna Maiolino e Mira Schendel, ao contrário, nunca se consideraram artistas neoconcretas. Maiolino, aliás, sempre resistiu a “certezas formais”, o que explica a adoção de materiais flexíveis como a argila, de 1980 em diante, por influência do pintor e escultor argentino Victor Grippo (1936-2002).
A argila é o protótipo de matéria, e não só pela função de formar seres de que é dotada no Antigo Testamento. Ela contém, segundo Maiolino, a possibilidade da forma. “E a forma organiza a matéria amorfa.” Simples assim, como é possível observar em suas peças selecionadas para a mostra.
Mira Schendel comenta essa ancestralidade bíblica em várias de suas monotipias, chegando a uma reflexão de caráter existencialista numa delas, de 1964, Nel vuoto del mondo (No vazio do mundo), que corresponde a um momento decisivo de sua carreira. Por essa época, Mira dedicava-se especialmente à pintura matérica, da qual também temos exemplos na exposição (têmperas sobre juta dos anos 1960).
A monotipia anteriormente citada, reproduzida num livro da Cosac Naify, é o avesso da atitude afirmativa que a textura compacta das pinturas sugere, resultante de um aglomerado de cimento ou areia. No caso da obra gráfica em questão, o “vazio do mundo” aponta para o advento de uma nova espacialidade, ditada por suas preocupações ontológicas. O espaço vazio, como se sabe, tocava particularmente a artista. A frase inserida na monotipia resume bem esse conflito do ser no limiar de um mundo em desaparecimento.
Trabalhos de duas séries históricas da artista neoconcreta Lygia Pape podem ser vistos na mostra — ambos dos anos 1960, justamente a época em que sua adesão ao movimento se fortaleceu com a criação do Livro dos caminhos (1963/1976) e Livro do tempo (1965). No primeiro caso, trata-se de uma obra em tinta látex e acrílica sobre madeira com quadrados em relevo, uma alusão direta a uma série de Mondrian que também inspirou Oiticica a criar seus metaesquemas. A forma geométrica (tão cara a Albers) é retomada no Livro do tempo, um quadrado azul sobre fundo branco, simetria explorada igualmente na peça tridimensional Volante (1999), cuja base é um quadrado em ferro banhado em cobre.
A exemplo de Maiolino, Lygia Pape trabalhou igualmente com materiais flexíveis. Uma das preocupações de Pape era incorporar o espectador em sua obra, concedendo a ele liberdade para manusear as peças, caso de Sting amazonino (1990).
Apresentada na 34ª Bienal de São Paulo, sua série Amazoninos, como o próprio título sugere, faz referência à região amazônica que a inspirou, tanto como a Antropofagia do modernista Oswald de Andrade. Na mencionada série, as chapas com tintas metalizadas que remetem à flora amazônica se apropriam, de modo antropofágico, da mitologia ameríndia para estabelecer uma curiosa relação com a contemporaneidade.
De forma similar, a suave textura do feltro ajudou a enriquecer a sintaxe visual da jovem artista Guga Szabzon, que adota, entre muitas outras referências, a geometria ancestral do patchwork das comunidades indígenas americanas, como a tribo Seminole, referência de outra grande artista têxtil, a norte-americana Sheila Hicks, que trabalhou com os mesmos padrões geométricos.
Guga Szabzon (1987) segue essa boa tradição, mas a renova com um olhar contemporâneo, enfrentando a instabilidade do mundo com a precisão da linha e, eventualmente, também das palavras, revelando um parentesco inexplorado com o trabalho de Mira Schendel e Anna Maiolino (em particular seus Bordados). Fonte inesgotável para a artista paulistana Guga tem sido o Dicionário de lugares imaginários, criado pelo escritor argentino Alberto Manguel. O mundo real pode ter fronteiras intransponíveis, mas não os mundos da literatura e das artes. Guga trafega pelos dois, costurando mapas e caminhos com linhas bordadas sobre feltro.
O mesmo interesse em construir uma cartografia pessoal se revela nos trabalhos da peruana Elena Damiani (1979). Arquiteta de formação, seus outros interesses são a geologia e a arqueologia. A artista usa, na peça Transits and Occultations III (2021), materiais que trazem uma considerável carga histórica (granito via láctea, travertino e cobre). Retirados de seu meio, eles são recriados numa obra que coloca em discussão aspectos culturais relevantes e criam tensão entre a experiência existencial pessoal e a coletiva.
Utilizando materiais inusitados — chaves, nylon e pregos em My Mistake II (2015) —, Vivian Caccuri (1986) chega a uma obra recente, Lava transparente II (2023), com uma escolha ainda mais diversa: barra de latão, tela de proteção, linha encerada, resina acrílica, miçangas e pedras. A paulistana Vivian estabelece com o espectador uma relação que extrapola os limites da experiência ordinária, conjugando visão e audição em sua pesquisa sobre o impacto que as ondas sonoras exercem sobre o corpo. É bastante próxima, nesse sentido, do experimentalismo de Lygia Pape e, em particular, de Anna Maiolino, quando se observa uma obra desta última, como Mais de 50 (da série Preposições, 2008/2013). Uma evidência, entre tantas outras, que liga seus trabalhos a essas artistas históricas.
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