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2023
O livro é o grande trabalho
Por
Jacopo Crivelli Visconti

O trabalho de Ana Amorim é intensamente pessoal. E íntimo. E invisível.

Invisível porque o que vemos, o que ela permite que seja exposto nas paredes de uma galeria ou de um museu, é um simulacro. O verdadeiro trabalho está guardado nos livros onde, há mais de três décadas, em alguma hora da noite ou da madrugada, Ana desenha de memória o mapa de todos os seus movimentos ao longo do dia. É de livros assim que saíram suas Grandes telas, nome que a artista dá aos trabalhos que retratam um ano inteiro de sua vida. Trata-se, na maioria dos casos, de instalações compostas por 365 ou 366 elementos, como a que abre esta exposição. Trabalhos monumentais, que levam meses — frequentemente mais do que os doze do ano a que se referem — para serem concluídos e precisam de espaços generosos para serem expostos e entendidos. É a série que a define como artista, poderíamos pensar. Mas não: “O livro é o grande trabalho”, ela diz.

Esses pequenos cadernos ou livros de capa preta condensam o pensamento da artista não apenas porque são o retrato mais espontâneo, rápido e direto da vida dela, dia após dia, mas também porque são e serão mantidos sempre fora de circulação, sem entrar, para todos os efeitos, no sistema da arte. Ficarão, de certa forma, num estado de eterna potência, sem nunca se tornar “obras” tangíveis, visíveis e, principalmente, à venda. Desde o início de sua trajetória como artista, Ana se incomoda com a ideia de produzir uma obra que se torne mercadoria e com o papel que a maioria dos artistas, consciente ou inconscientemente, acaba desempenhando no sistema capitalista. A partir desse incômodo, durante mais de uma década ela se recusou a participar de qualquer exposição que fosse patrocinada por empresas particulares ou que tivesse fins comerciais, o que, por um lado, acabou mantendo seu trabalho num lugar de invisibilidade, por outro, permite considerá-la uma das pouquíssimas artistas brasileiras a adentrar o campo da crítica institucional.

Um campo que, contudo, não a define. Porque Ana volta, diariamente, aos seus cadernos. É nesse desenhar diário para si mesma, nesse hábito silencioso de registrar os movimentos do dia numa folha que ninguém vai ver, que o trabalho dela transcende o âmbito da crítica institucional, já que este, por sua própria natureza, se dirige a um público e almeja um debate. As obras aqui expostas são o lado de sua produção em que Ana Amorim demonstra ter plena consciência da necessidade, da urgência até, desse debate. Obras que tensionam o paradoxo de ter de produzir para um mercado no qual ela não se reconhece, porque sabe que é esse mesmo mercado que objetivamente gera e alimenta a produção, o debate, a circulação e a visibilização de trabalhos e ideias. Até aquelas ideias que, no longo prazo, têm potencial de mudar o sistema.

Obras que podem ser leves, quase diáfanas, ou então pesadas, enlutadas, violentas, ou, ainda, de uma beleza frágil, poética, comovente. Obras gigantescas ao lado de obras diminutas, mas que condensam em poucos centímetros quadrados a potência do tempo que passa. Porque é do tempo que, em última instância, todas essas obras falam. Não pretendem desafiá-lo, não buscam a eternidade. Pelo contrário, a impressão é que sonham ser, elas mesmas, tempo: fugidias, conscientes de sua transitoriedade e impermanência, como os mapas desenhados nas paredes a cada dia da montagem e durante a própria exposição, um para cada dia, e que serão apagados ao término dela. Uma demão de tinta, ou duas, vão ser suficientes para apagar tudo, não vai sobrar nada.

O trabalho de Ana Amorim é um memento mori.