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2022
O Suplício de Cabral
Por
Thiago Rocha Pitta

O Prenúncio

Cabo da Roca, ponto mais ocidental da Europa. Aqui, onde termina a terra e começa o mar (Camões). 8 de março de 1500. Um enorme monolito levita, súbito precipita-se no mar; invisíveis as naus ao fundo.

 

A Travessia

Na calmaria tropical, o mar plácido oleoso; as velas inertes parecem mármore.

Tudo é petrificado.

Os grumetes, Antonio e Gonçalo, sofrem saudades dos sofrimentos vividos à casa; convocados às cabines de popa, sofrem abusos indescritíveis; no porão, lhes consolam os degredados.

Nas orlas ainda não alcançadas, crianças brincam em suas pequenas canoas. As Naus são um inferno para todos que não são oficiais, nobres e padres. À proa, amuam-se marinheiros, grumetes e degredados ainda a degredar-se nos porões. À popa, abusam carnes, abundam licores.

N’aldeia, o ambiente é de comunhão, tudo compartilham, falta não há nem separação.

O vento sopra; sargaços tocam os costados das naus; fragatas e gaivotas flutuam ao céu. O velho monte vê as naus no horizonte, que ainda nada percebem.

Na costa, um presságio; jubartes escutam o marulho dos cascos.

 

Um Mal Entendido

Róseas falésias a bombordo prenunciam segura baía; fazem-se ferros.

Os nautas, medrosos dos nativos na praia avistados, enviam grumetes e degredados para contato. Uma canoa aborda a nau, dois nativos são embarcados; oferecem-lhes água d’além mar, que cospem de ojeriza.

Na praia, travam amistoso contato.

Os grumetes logo tornam-se crianças que foram outrora, como e com os curumins brincam na orla.

Os nativos se compadecem do mal estado dos nautas; lhes encaminham ao rio, onde doce água jorra; lhes dão coco, banana e mandioca.

À noite, permanecem os degredados e grumetes; nas naus, os nautas.

No abrigo d’oca se acomodam os estrangeiros; dormem, agasalhados pelo fogo.

 

O Pesadelo Da Terra

Em terra, e por toda ela, sonham pesadelos.

A água sonha a seca; a planta, o fogo; a terra colapsa; cai o céu; a onça vira só pele; a baleia, óleo; a ave, peito de frango congelado. A mata sonha pasto, eucaliptos e vacas. A morte sonha nas gentes. O passado sonhou hoje.

Em sonho, os grumetes relatam abusos; os degredados crimes dos nautas em África.

Nos intervalos despertos entrenoites, percebe a terra, e toda ela, que os pesadelos são oráculos. Noite após noite, os nautas comportam-se à luz do dia com ganância e, com avareza, sondam a terra, precipitam matas, capturam, molestam. Revelam-se agentes da destruição, que todos os olhos fechados veem.

 

O Conselho Terrano

À véspera da partida, antes d’aurora, a pedra emite um chamado. Animais, plantas, fungos, o rio; dos céus, os pássaros pousam à porta d’oca. Despertam mulheres e homens da terra. Reunidos, comungam e projetam antecipar a vingança aos crimes.

 

O Baptismo

No interior da mata, onde o rio brota da terra, feiticeiras e serpentes encantam as águas, enquanto, à jusante, homens carregam barris batizados às naus.

 

O Suplício

Entorpecidos pelas águas enfeitiçadas, dormem os nautas. Grumetes cúmplices conspirantes, em um bote, abandonam a nau. Na canoa, flechas são acesas e cruzam o céu tal qual meteoros.

Lentamente o fogo consome as naus.

Uma ou outra nau percebem e içam velas; no entanto, jubartes as perseguem; uma a uma, as abatem.

 

fim