E se você se tornar uma borboleta
ninguém jamais pensará
em como você era
quando rastejava pelo chão
e não queria asas.¹
— Alda Merini
Com pequenos gestos, obstinadamente repetidos, Lidia Lisbôa cria os personagens, os cenários e o roteiro de seu teatro. Suas obras, que partem da argila, do tecido, de botões, bronze e tinta, guardam o toque da artista e, com ele, memórias de eventos vividos, testemunhados e, sobretudo, ressignificados por ela. As obras aqui apresentadas nos convocam para uma escuta atenta a essas narrativas que elas encenam. Demandam uma reação imediata e corporal, o tipo de acordo que se estabelece ao vivo, entre atriz e espectador.
Os Casulos, formados por camadas sobrepostas de anéis de tecidos variados unidos por crochê, constituem esculturas que a artista veste e utiliza em performances. Eles apontam de maneira mais flagrante para o aspecto teatral e ritual que atravessa toda a prática de Lidia Lisbôa, cuja primeira formação em uma linguagem tradicionalmente reconhecida como arte foi como atriz e figurinista de teatro. O título parece se referir à própria capacidade da artista de não apenas imantar objetos comuns de memória, mas também de sua habilidade em transformar acontecimentos passados.
Feitas em crochê, de maneira semelhante, Tetas que deram de mamar ao mundo, uma das séries mais reconhecidas da artista, são obras de grande escala que se suspendem a partir do teto e formam uma bolsa de formato similar ao de um seio. A técnica utilizada pela artista foi apreendida ainda na infância, conforme conta, observando atentamente mãe, tias, avós e vizinhas reunidas e crochetando. Se, por um lado, a obra aponta para o trabalho de cuidado fundamental e, no entanto, invisibilizado que é atribuído às mulheres nas sociedades patriarcais, por outro, o conto de Lidia parece indicar também como ela enxergou na costura uma importante ferramenta de sociabilidade feminina e de fortalecimento subjetivo.
Observando a maneira como a artista trabalha, protegendo-se, com esse pequeno movimento, das perturbações ao redor, é fácil associar o ato de fazer crochê com o de entoar um mantra, a repetição de um gesto capaz de a colocar em um estado de concentração como aquele que antecede uma performance ou a entrada de atrizes e atores no palco, um tipo de transe.
A circularidade presente nos gestos que formam os desenhos de Memórias de renda, nos cordões de argila que, empilhados, formam os Cupinzeiros, se instaura como tempo. Alguns dos desenhos feitos ainda na década de 1990, mostrados pela primeira vez nesta exposição, poderiam ser vistos como projetos dos trabalhos produzidos atualmente.
O que esses desenhos atestam, sem dúvida, é a necessidade criativa imparável de Lidia, que elege como suporte o que estiver à mão para dar vazão a seu ímpeto. Visceralidade que se espalha, na cor vermelha, pelo espaço e que escorre das aberturas dos Cupinzeiros, criados para esta exposição. A seiva que escapa dessas fendas reforça a lembrança de que dentro deles há uma vida, também pulsante, ou, ainda, de que eles mesmos estão vivos, tornando-se quase entidades que habitam esse palco.
Ao entrar em contato com a obra e com a artista, passamos a crer em algo que escapa às vistas. Como se as coincidências e eventos cotidianos fizessem parte de um destino preestabelecido. Um roteiro que podemos alterar a nosso favor, com a ajuda de determinados objetos ou rituais.
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1. Tradução livre do poema: “E se diventi farfalla / nessuno pensa più / a ciò che è stato / quando strisciavi per terra / e non volevi le ali”.
São Paulo, Brasil
Rio de Janeiro, Brasil
Le Puy-Sainte-Réparade, França
Gwangju, Coreia do Sul
Instituto Tunga
Boa Vista, Brasil
São Paulo, Brasil
Essen, Alemanha
Rio de Janeiro, Brasil
Nantes, França