MENU
2020
Origem e destino
Por
Leno Veras

Segundo as narrativas de criação, o povo Yepá Mahsã, conhecido como Tukano, veio ao mundo navegando na cobra-canoa da transformação, Pameri Yukese. Trazendo consigo todas as medicinas e os instrumentos sagrados, atravessaram as águas do mundo até chegar às grandes praias da transformação na Baía de Guarnabara. De lá subiram pelas costas litorâneas, alcançaram a foz do rio de leite, o rio Amazonas, subindo até as cabeceiras, e se instalaram na região hoje conhecida como Alto Rio Negro.

Essa história é compartilhada por vários povos indígenas, que têm como origem comum a cobra-canoa da transformação. São os povos do Jurupari, povos ayahuasqueiros que continuam existindo e resistindo na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. A região conhecida como “Cabeça do Cachorro” teve o primeiro contato com os europeus no século 17. No século 19, suas populações indígenas foram escravizadas pelo império da borracha, e no início do século 20, suas culturas foram perseguidas e demonizadas pelas missões católicas salesianas com o apoio das políticas integracionistas do Estado Brasileiro.

Após quatro séculos de etnocídio, a passagem dos conhecimentos tradicionais, transmitida entre gerações, se reafirma como ato de resistência à violência colonial. Manter a cultura indígena viva e dinâmica, cultivando a memória, o pertencimento ao território, a força das medicinas e a verdade da cosmovisão é um compromisso político para a sobrevivência.

Para Daiara Hori, nome tradicional Duhigô, pertencente ao clã Tukano Erëmiri Ahûsiro Parameri, o ato de contracolonizar consiste em reafirmar o pensamento indígena, invertendo a ordem estabelecida pela geometria de poder discursiva que domina o entendimento ocidental, utilizando as ferramentas contemporâneas – inclusive a arte – para estabelecer uma relação dilógica entre histórias e estórias.

 

Miragem e Miração

As obras de Daiara Tukano, como é mais conhecida, se fazem presentes na 30ª edição do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo como um convite a conhecer o universo partilhado por esses povos, que remam juntos não somente entre espacialidades, mas também entre temporalidades, preservando a memória social de sua origem comum por meio da prática coletiva de experiências estéticas; sob os mais variados formatos e suportes. Sua visualidade foi materializada nessa mostra por meio de desenhos e pinturas, que a autora reúne em núcleos significativos intercomunicantes.

Seu trabalho consiste na pesquisa sobre o “Hori”, palavra da língua Dahseyé (Tukano) que se refere à “miração”, às visões do Kahpi (ayahuasca), que é medicina de origem de todo o conhecimento, história, língua, cantos e desenhos do povo Tukano. Das visões e mirações, alcançadas por meio da rememoração de sonhos e também de práticas espirituais realizadas como tradição por sua família, mecanismos de comunicação que, bem como os meios artísticos, são compreendidos enquanto formas de transmissão de conhecimento. Das pinturas que se encontram em objetos tradicionais de sua cultura, às tramas das cestarias, das cerâmicas às pinturas corporais, uma grande narração sobre a transformação dessas sociedades é arquitetada. Engendra-se, multidisciplinarmente, a narrativa Tukano.

Atenta aos ensinamentos de seu avô Ahkïto, Casimiro Lobo Sampaio, vítima da Covid-19 em 2020, aos 110 anos de idade, Daiara mergulha na memória de sua família e de seu povo, da figuração ao abstrato e do monocromático à luz. Investigando os grafismos tradicionais, experimenta pictoricamente a recepção da luz – “da cor presente à inexistente”, como define em sua proposição conceitual –, buscando compreender a densidade de suas vibrações, assim como a maneira como incidem sobre olhares submetidos a regimes de visualidade de historicidade euro-centrada.

Assim, vem produzindo, desde 2013, os “Kahpi Hori”: diversas telas homônimas que são, a um só tempo, obras autônomas e associadas, cujas presenças constituem depoimentos experienciais, individuais e coletivos da visão de sua cultura, que apontam para a transformação da humanidade e do pensamento.

Como jovem mulher vinda de uma cultura patriarcal e patrilinear, cujos conhecimentos cerimoniais são tradicionalmente reservados aos homens, Daiara recorre às narrativas da criação para apontar as figuras femininas, desde a Grande Avó criadora do universo aos espíritos que transitam as camadas do mundo, e o “Hori”, que atravessa tempo, matéria e espírito.