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2021
Ouroboros Sucuri
Por
Gunnar B. Kvaran

Tenho tido o prazer de acompanhar o extraordinário desenvolvimento e as realizações de Thiago Martins de Melo já há mais de uma década. Pude testemunhar como ele conseguiu alcançar habilidades notáveis como pintor. Ele dominou as diversas técnicas da pintura figurativa, criou novos tipos de estruturas narrativas, que se articulam na tela em macro e micro-histórias, tempos e lugares divergentes, e uma mistura de ficção e realidade. Seus trabalhos demonstram a riqueza de seu conhecimento e de sua cultura – intelectual, espiritual e intuitiva – e seus próprios desenvolvimento e crescimento individuais.

No início, as pinturas de Martins de Melo se relacionavam com sua experiência pessoal e familiar, com seu entorno mais próximo. Posteriormente, ele expandiu sua visão para incluir a complexidade da sociedade brasileira, chegando a inseri-la, junto com a sua iconografia, num contexto global. As pinturas abarcam ao mesmo tempo o mundo e a vida íntima do artista. São sempre concebidas e construídas em camadas de símbolos e figuras que lhe permitem incluir elementos heteróclitos da realidade e além. A vida concreta, histórica e social, está sempre presente, mas há também uma dimensão espiritual e religiosa, onde atuam energias e forças que não pertencem ao nosso mundo terreno. Há também a política, uma forma de resistência que revela os mecanismos internos da injustiça e da discriminação social. Martins de Melo se preocupa com seus compatriotas, em especial com os marginalizados da sociedade brasileira. No entanto, orientado pela noção de “sincretismo”, ele consegue estender seu discurso a uma cena mais universal, onde os signos, os símbolos e os diferentes elementos cosmológicos assumem um sentido mais aberto, de amplo campo semântico, que se ancora em diversas realidades de diferentes épocas da humanidade.

Em seu ambicioso projeto como artista e contador de histórias, Martins de Melo ampliou e reinventou a noção de pintura ao transformar suas cenas pictóricas em animações e objetos escultóricos, ou experiências teatrais. Em suas obras, muitas narrativas acontecem simultaneamente, envolvendo acontecimentos e pessoas reais, bem como forças espirituais, mas sempre com um profundo senso estético e uma preocupação com a coerência e a clareza. Suas imagens fortes e poderosas são apropriadas, criadas e, então, postas em diálogo na tela. Na maioria das vezes surgem de sua imaginação, inspiradas pelo folclore, pelos mitos antigos e eventos sociais históricos, cruéis ou sublimes. Seja qual for o assunto, pode-se sentir em suas obras o prazer de pintar, a forma como ele manipula os materiais e os pincéis com sensualidade e satisfação.

Esta exposição apresenta um momento no tempo da obra de um artista que se encontra em uma contínua e vigorosa trajetória. Ele abriu e ampliou seus objetos e suas abordagens pictóricas. Somos aqui confrontados com obras de grande complexidade em termos de temas e soluções formais. Encontramos motivos fortes e recorrentes, como a serpente, um símbolo local e universal que cruzou religiões e tempos históricos e apareceu em várias obras de mestres mais antigos e contemporâneos. A primeira parte desta exposição apresenta uma seleção de trabalhos nos quais o artista revisita esse motivo da serpente, que lhe dá o título Ouroboros Sucuri. Na segunda parte, selecionamos uma constelação de novas obras; esculturas e pinturas que mostram a experimentação em curso do artista no que se refere a novidades formais e narrativas inovadoras, abordando a cultura, o espiritismo, o ocultismo, os mitos e a política dentro de um discurso pós-colonial. Juntos, formam uma construção complexa, em que o espectador passa por diferentes zonas da ficção baseada na realidade. É essa fusão de signos e símbolos, religiosos e espirituais, e referências sociais e políticas da memória coletiva que carregam essas obras com a sua energia singular e que as inserem na grande tradição da pintura histórica.

Embora as obras de Martins de Melo sejam convidativas, sedutoras e intrigantes, requerem certo tipo de interpretação do espectador. Por isso, pensamos que seria esclarecedor deixar o artista falar por si e nos contar sobre suas referências e seus ingredientes pictóricos mais importantes.

Seja bem-vindo ao pensamento de Thiago Martins de Melo.