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2023
Pagã
Por
Ana Maria Maia

O único destino com que nascemos é o do ritual.
(Clarice Lispector, A paixão segundo GH, 1964)

Bárbara, idólatra, profana, secular, leiga, infiel e vidente, ou, simplesmente, pagã. São muitas as formas empregadas no imaginário ocidental desde a antiguidade para caracterizar a mulher, seu corpo, suas atitudes e sua sexualidade. No mundo dos homens, o feminino foi e é reiteradas vezes identificado como razão de desvios das normas, e, por isso, de perigos à vida coletiva, que devem ser contornados ou ao menos controlados sempre que possível. Diante dessa construção milenar, responsável pela perpetuação do pensamento patriarcal e machista, Regina Parra (São Paulo, 1984) já criou uma série de trabalhos que demarcam um posicionamento crítico, de cunho feminista. No decorrer do último ano, desenvolveu este projeto transdisciplinar, com similar vocação, para a Pinacoteca de São Paulo.

Pagã se constrói como um ritual de celebração do corpo da mulher, de seu prazer, de sua liberdade e de sua vívida insubordinação. Como personagem, arquétipo ou espelho, como uma ou como muitas, sem dúvidas como nós mesmas, a mulher que dá título ao trabalho prefigura uma jornada que o público é convidado a acompanhar desde o momento que adentra a galeria dedicada à mostra, no segundo andar da Pina Estação.

Da articulação de obras plásticas e apresentações presenciais ou documentadas em vídeo e áudio surge uma espécie de peça teatral desmembrada no espaço expositivo, de modo a entrelaçar a dramaturgia e a experiência de visita, a ficção e a realidade sensível de cada pessoa que por ali passar. Para efetivar essa criação, Regina vinculou sua obra já polivalente —pinturas, desenhos, vídeos, performances, instalações, neons— a colaborações de outros campos criativos, como a dança, a música, o figurino e o cinema. O que une todos esses elementos é o teatro, primeira formação da artista e lógica que volta a ser cada vez mais evidente na sua produção em artes visuais.

Pagã tem a estrutura de uma tragédia, gênero inaugural do teatro grego, que tematiza sagas de personagens míticas e cujas encenações muitas vezes levam a plateia a se reconhecer e expurgar suas angústias e tristezas. A personagem central, neste caso, é uma mulher que supostamente “estava bem”, mas abdicou de seu lugar social e embarcou em um processo de autodescoberta e transformação.

O argumento remete ao culto greco-romano de iniciação que aparece nos afrescos da Vila dos Mistérios, edificada na cidade italiana de Pompeia no século 2 a.C. Os painéis contam a história de uma jovem que ultrapassa o portal dos sátiros e se oferece a Dionísio, deus do teatro, do vinho, da fertilidade e da natureza. O caminho dessa jovem envolve descer ao nível animal, literalmente cair ao chão e decidir ali permanecer, engatinhar, deseducando-se do repertório até então adquirido. Só depois disso ela estará apta a voltar à forma humana e renascer como bacante, uma sacerdotisa de Dionísio que alcança o que se considera divino por meio de seu próprio êxtase.

Regina Parra interpreta essa história em nove cenas, mas a permeia com outras sagas e tempos. Nesse fluxo de aproximações e livres traduções, a jovem de Pompeia se confunde com G.H., uma mulher que acessa um fluxo de consciência revelador de sua condição de gênero e classe social após se deparar com uma barata enquanto limpa seu apartamento no romance de Clarice Lispector A paixão segundo G.H., de 1964. A barata, no entanto, acaba sendo esmagada pela porta do armário. A “linguagem sonâmbula” [1] que o estado agudo de crise traz para a personagem dessa obra paradigmática da literatura brasileira do século XX reverbera em oralidades igualmente afeitas a propagar emoções sem fazê-las caber em palavras. Assim, conecta-se ainda, por exemplo, à mitologia de Electra, com seus gritos e lamentos, e ao canto ofegante de Joe Strummer (Ancara, 1952 - Broomfield, 2002), vocalista da banda The Clash, na música Straight to Hell (1982).

Nesse labirinto de referências e experiências, a força vital e erótica deixa de ser problema e torna-se solução. Ao invés de representar, consentindo o que chega de fora como lei, eis um chamado para manifestar aquilo que é inerente. Para Regina Parra, o teatro é um ritual de “in-cenar, in-corporar, in-carnar”[2].

 

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1. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. São Paulo: Editora Rocco, p. 14, 2009
2. Trecho do projeto apresentado pela artista para a Pinacoteca de São Paulo, em 2022.

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Texto curatorial da exposição Pagã, Pinacoteca de São Paulo | Pina Estação, 2023