MENU
2023
Pedras e bichos d’água
Por
Germano Dushá

A luz bate na beirada do rio, ilumina a cachoeira, abrilhanta a água e acende a rocha, pronunciando o rococó das pedras e das plantas. Reluzem os bichos todos: peixes, pássaros, cachorros, cavalos, gárgulas, dragões e outras feras sem nome. A incidência do clarão confunde fundo e superfície, mistura as cores, bagunça as texturas e dissolve os corpos uns nos outros. Nesse chiaroscuro aquoso — meio sólido, meio líquido — testemunhamos o mistério da criação e da transformação das coisas no mundo… Assim como sentimos algo mexer dentro de nós quando revoltam os afluentes do nosso intestino.

É sob essa aura que nascem as criações de Marina Woisky. De sua obra emergem aparições ambíguas, imagens-objetos que seduzem com um magnetismo enigmático, oferecendo visualidades insólitas e performando enganações que não permitem discernir o que é plano do que é relevo, o que é duro do que é mole, o que é seco do que é molhado. No manejo radical de certas imagens, a artista conduz um intenso processo de mixagem que envolve edição e impressão fotográfica, técnicas de costura, criação de volumetria por meio do preenchimento de tecidos com gesso e cimento e, por fim, banhos de resina e outros acabamentos. Ao tensionar os limites entre a fotografia, a pintura e a escultura, seus trabalhos habitam um espaço de transição entre a bi e a tridimensionalidade. No limbo entre massas amorfas e figuras discerníveis, incitam deslocamentos do olhar e sinestesias, conduzindo um jogo dinâmico que articula familiaridade e estranhamento e estimula nosso sistema sensorial e nossa capacidade imaginativa.

O ponto de partida e de chegada do trabalho de Marina Woisky é o ornamento como figura histórica, sua relação com a natureza orgânica, sua dimensão semântica e implicação emocional, ou seja, a carga energética de certos elementos cujo papel é permanecer às margens das narrativas. Adereços, adornos, enfeites: tudo aquilo que floreia o planeta, que dá liga ao desenrolar dos fatos sem se impor como componente nuclear no fluxo das histórias. Atraída pelas qualidades desses códigos visuais, a artista vai encontrando embriões estéticos a serem reprogramados, gestando-os de modo singular. As imagens recolhidas na internet, em livros e fotografias, e também retiradas de embalagens e tecidos estampados, são levadas a um espaço-tempo ideal. Despidas de seu sentido original, são desdobradas em outros contextos e lançadas em novas possibilidades existenciais. Ao simbolismo de sua gênese soma-se a complexidade material de sua nova corporificação. Surgem então criaturas e paisagens metamórficas sem natureza ou localização definida, compondo um repertório próprio, tão mitológico e simbólico quanto ornamental e decorativo.

Em Pedras e bichos d'água, sua primeira exposição individual, a artista toma como fonte primária de imagens a reformulação do barroco e de certas escolas asiáticas na cultura contemporânea, com especial atenção a certas ilustrações limítrofes de animais e a verticalidade nas representações de cachoeiras. Interessada pela transmutação da mágica que envolve esses seres e lugares quando inspiram objetos corriqueiros, Marina discute os meandros da produção imagética contemporânea, esmiuçando o estatuto estético da decoração, desde noções mais clássicas, passando pelo pastiche e pelo kitsch, até a cultura de massa e o advento digital.

O volume, o brilho e a tonalidade esverdeada conferem aos bichos certo encantamento, aludindo às representações simbólicas cravadas em pedras como jade e amazonita. Desse modo, aproximam-se da ecologia das paisagens em cascatas — oriundas de imaginários orientais — e sua atmosfera etérea, repletas de carpas e cisnes em movimentos imaculados. Essas cachoeiras aparecem no espaço expositivo como informação imagética e também comentário arquitetônico — ora como janela, ora como espécie de biombo, treliça ou cobogós. Trazem consigo a materialidade fascinante, a vitalidade biológica e o prenúncio sacro, isto é, o potencial espiritual desses lugares. A cachoeira revela-se como formação geológica, como oportunidade de banho, e como oratório.

Entre o conhecido e o inaudito, entre o rígido e o flexível, esses trabalhos-talismãs nos abrem para a descoberta planetária, para um passeio pelos continentes, pelos séculos, remetendo ao que há de supérfluo, frívolo, extravagante e estrambólico nos campos e nos hortos, nas casas e nas catedrais, nas prateleiras e nos quintais, nas mídias sociais e nas ruas comerciais. São os motivos universais vestidos de sua regionalidade, e aqui banhados nos fluidos do indizível, daquilo que ainda não tem nome. 

Salta à vista, então, o que está nas beiradas. No lugar do foco nas peças centrais de uma engrenagem linear, forma-se uma história inteira de modo circular, em espiral, composta apenas de arranjos e combinações do que não é fundamental à estrutura. Como resposta ao axioma moderno "a forma segue a função", esses trabalhos lembram que, antes de tudo, é preciso existir a imaginação. São recortes mundanos: uns bichos que brilham, pórticos exuberantes para atravessar, quedas d'água fabulares para se banhar, feitiçaria das formas, figuras que liquefazem na abstração, revirando a fantasia, com bocas abertas e garras fullgás, na altura do pescoço, caçando o cangote, mexendo os olhos, prontas para dar o bote.