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2022
PLAY-DELAY
Por
Victor Gorgulho

“Em parte a gente é arte. Em outra parte, técnica.

 

Anunciava, ainda no ano de 1978, os inconfundíveis agudos da voz de Gal Costa, ao entoar a canção “Acende o crepúsculo”, composta então pelos irmãos Marina Lima e Antônio Cícero, devotos daquela que é até hoje uma das maiores musas da canção brasileira. É logo nos versos de abertura da canção que Marina e Cícero concluem, implacavelmente, uma das maiores questões ligadas ao labor artístico, desde que a arte é arte – ou mesmo até antes de que tal fosse agraciada com tal pomposa alcunha.

Durante mais de seis décadas dedicadas à sua produção artística, Dudi Maia Rosa (São Paulo, 1946), não poderia ter endossado mais a afirmativa de Marina e Cícero, amplificada aos quatro ventos pela mítica voz de Gal Costa, na década de 1970. Ainda que o campo da arte contemporânea tenha consideravelmente esgarçado as infindas possibilidades ligadas ao labor artístico (no campo da pesquisa teórica, nas inúmeras e sucessivas tentativas de morte dos suportes tradicionais como a pintura e escultura e por aí vai…!) fato é que o trabalho do artista, grosso modo por dizer, pouco mudou. Trata-se de um processo de experimentação, dedicação e repetição extenuantes daquilo que o artista está a trabalhar, na prática e na vivência diária de seu ateliê.

Em sua mais recente exposição individual, Tudo de Novo, apresentada na Galeria Millan, na capital paulistana, entre os meses de agosto e setembro deste ano, Maia Rosa conduziu um processo criativo em que largamente pode driblar – superar? – certos impasses de ordem estética, psíquica e de onde mais nossos cérebros e corações podem dar conta. Por lá, em parceria com a visão e as ideias deste que vos fala, discretamente mantendo-me na esfera da curadoria, obras de distintas gerações, suportes, formatos e momentos da carreira do artista deram vida a um poderoso conjunto de trabalhos cujas afinidades, pelo menos a priori, não eram assim tão facilmente reconhecidas pelo artista.

Entre sombra e luz, lixo e luxo, gambiarras de plástico, vidro, acrílico e outros materiais mais conviviam com a imponência das amplamente famosas obras em resina poliéster e fibra de vidro do artista, produzidas pelo próprio desde pelo menos a década de 1980. Ainda que a beleza e a força individual dos trabalhos fossem deveras inquestionáveis, o verdadeiro clique que funcionou como um místico disparador do processo expositivo por lá foi a permissão – voluntária, involuntária, forçada, arriscada…! – de que as obras buscassem, entre si, suas afinidades eletivas, suas radicais diferenças, suas insuspeitadas complementariedades. “Tudo de novo” em nada soou, para o público e para o artista, como um exercício da ordem do automatismo: na contramão de um mundo cujo imperativo da produtividade nos cega e nos angustia, Maia Rosa teve a certeza de que estava em seu hábitat natural, cercado das criaturas que lhe são tão familiares, como filhos, como pedaços de seu próprio corpo. O que era preciso era, renovadamente, enxergá-las, de olhos lavados, de ouvidos puros, desfrutando, em larga parte, do tempo dilatado permitido pelo ínterim da pandemia da covid-19.

PLAY-DELAY – em caixa alta, como uma música anunciada com fervor e animação unívocas, no meio de uma festa que parece estar apenas chegando na metade do caminho, ainda que há muito já goze das certezas do auge… errr… sem abandonar as muitas agruras da prática artística cotidiana, sabemos – sugere um momento em outra instância de renovação, diferente daquela que acabamos de presenciar e, certamente, também distinta do que por virá no horizonte da produção do artista.

PLAY: o Dudi está apenas começando, a dança é longa, o salão é vasto, a alegria é a prova dos nove, dos dez e dos 1001 admiradores do artista, sempre afoitos para presenciarem seu próximo passo. DELAY: há também aqui, é claro, a consciência do tempo, suas impossibilidades, a dor e a dúvida que o passar dos dias carregam com si e nunca deixarão facilmente se esvaírem feito poeira de resina e também poeira cósmica, poeira dos astros, poeira fina que representa aqueles que não estão mais aqui para bailar com Dudi sua nova coreografia, sua nova coreo-política, seu gesto afirmativo e irrevogável de que a vida seguirá sendo vivida e o trabalho seguirá sendo chafurdado. Na lama, no caos, na assepsia das macias paredes brancas dos cubos brancos, na meia-luz do ateliê-casa que o artista divide com sua muito querida mulher, Gilda Vogt Maia Rosa (também uma artista de luz própria e inapagável). PLAY: agora, alto, música no talo, salão cheio, sorrisos de orelha a orelha, a vida é uma só e esse momento também. DELAY: nunca é tarde para nada (permitam, no calor da emoção, o uso de certo slogan demagogo!?), a pista de dança só é uma pista de dança quando as peças se encaixam, se elevam, uma a uma ganham vida própria, do chão às alturas, resplandecendo, brilhando, reluzindo. Silenciosa e estrondosamente reafirmando suas necessidades de estarem ali.

Play – toca mais uma! toca Tim Maia! – ainda que com certo atraso – nós esperamos o delay! – não deixem a pista vazia, ocupem-na, berrem, sorriam, fitem as paredes translúcidas, espessas na leveza misteriosa da matéria que só Maia Rosa sabe manipular. Ele os convida: dancem, sigam a dançar, não se sabe mais onde está o botão pause, a sinfonia deve seguir…! A sinfonia dos dias, como diria o genial cronista João do Rio, e a sinfonia da arte, do labor artístico; essa misteriosa química guardada aos grandes e às grandes, aos generosos e aos destemidos, aos artistas, enfim. Dancem! Dudi Maia Rosa está a esbaldar-se no meio da pista – não o deixem sozinho, por favor! Play, de novo, outra vez mais, com o delay, veja lá, sem pause, toquemos. Deixemos tocar.