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2008
Re-inventar lugares
Por
Ligia Canongia

A questão vital da exposição Coordenadas y Apariciones surge do desafio proposto pelo Museu Reina Sofia ao artista José Damasceno, no sentido de ativar espaços habitualmente não expositivos, e dotá-los de teor poético. Pela primeira vez, tanto a instituição quanto o artista vão se lançar na aventura de potencializar uma topografia adormecida por seus usos convencionais. A retomada inédita desses espaços estará, portanto, desviando o olhar do espectador para locais de passagem, para territórios puramente funcionais e desprovidos de valor, agora vertidos em um contexto ficcional, e com propostas direcionadas a se apropriar dos espaços públicos do museu. Esse desvio é essencial na instauração disso que chamaríamos ‘olhar pela primeira vez’: descobrir ou re-inventar a obra e seu lugar.

Toda a intervenção do artista neste projeto desencadeia um questionamento vigoroso sobre a própria natureza do espaço, através de uma torção em sua lógica original. Ali, produz-se um evento, um devir arquitetônico inesperado, a partir da instauração de situações escultóricas que surgem ao longo do museu, no intuito de mobilizar o deslocamento e a re-inserção dos espaços em uma dinâmica extraordinária. O espaço é tratado como um campo de situações instáveis, um campo que se intui, e onde as ações poéticas intervêm de forma descontínua, transformando o perfil linear desses lugares numa ocorrência inopinada. E essa dramatização transforma o lugar do evento em terreno especulativo, fora dos limites racionais e dos compassos normativos da realidade.

A obra de José Damasceno supõe uma questão ambígua por excelência: ao mesmo tempo em que apresenta uma materialidade inequívoca, e por vezes até pujante, há algo fluido, esquivo, que sobrevoa a presença material e se instaura como uma imagem em trânsito, com instabilidade de sentidos. Esse estado latente, indeterminado, que transita entre as coisas e cuja visibilidade é obscura está, entretanto, paradoxalmente ancorado na matéria. A dinâmica da percepção compreende, portanto, o campo sensível, mas também um movimento espiritual que adivinhe, ou invente, o sentido daquilo que flui e nos escapa.

Produtor de equações ou sentenças visuais que desconcertam o senso comum, o artista distribui pelo museu eventos pontuais, ativando ‘coordenadas’ que produzem espaços. Assim, promove um outro gênero de lugar, imaginário, onde ocorrem relações impensadas - ‘aparições’, que definem um campo aberto de possibilidades da ordem da linguagem. E é ele quem lança a pergunta: “são as situações mesmas as aparições? Ou algo que surge produzido pelos deslocamentos entre as situações?” 1.

As aparições seriam talvez da ordem de um sentimento metafísico, que está acima ou além da pura questão da desmaterialização do objeto, tão explorada nas estéticas pós-modernas dos anos 1960 ou 1970. Em Damasceno, as coisas aparentes funcionam como propulsoras de um móbil imaginário, que estaria em constante deslocamento, mas que apenas mental ou conceitualmente ‘aparece’. Existiria então, na obra, uma mobilidade e um congelamento potenciais e oscilantes, uma vez que o enunciado nodal do trabalho problematiza, em paroxismo, a questão do movimento.

Essa animação oculta, que prevê a ativação constante de cruzamentos poéticos entre o visível e o invisível, e que dialoga internamente com o fato plástico em si, subentende a dilatação do espaço e a duração no tempo, em latência cinemática. É como se, tanto a paralisação, quanto o movimento, fossem energias esquecidas na consciência do espaço, mas passíveis de ressurgir, uma da outra, a qualquer momento. A consciência da obra inclui, portanto, a de seus interstícios, desses estados latentes e intermediários que compõem, igualmente, seu ‘corpo’.

Os interstícios são o lugar do silêncio na linguagem, são as frestas por onde vemos imagens insondáveis, lugar de uma perda significante, que só nos recompensa na ‘volta’ de sua própria experiência, quando dela extraímos, ou acrescentamos, sentido. Essa projeção da obra ao espectador e ao mundo, e deles de volta à obra, esse entrelaçamento voluptuoso e volúvel que inscreve a obra de arte no domínio da relação intersubjetiva e fenomenológica, foi, afinal, fundamento de uma visão não racionalista da modernidade.

Damasceno coloca, assim, as ressonâncias da própria obra, suas reverberações na psique do espectador, como questão visual, como ‘lugar’ de correlações supra-sensíveis, em que se agregam significações plurais à própria coisa. O objeto, na verdade, comporta a possibilidade de uma transformação constante, a mercê desse movimento físico e semântico que a ele emprestamos. E as ‘aparições’ retornam continuamente ao objeto físico do qual emanam, convertendo seus limites em expansão, e declarando, no objeto, seu caráter ilimitado.

Espécie de máquinas fabulosas em ação, as esculturas de José Damasceno estabelecem redes sistêmicas, em que se re-encaminham, constantemente, as direções e as distâncias. Em uma configuração problemática do espaço-tempo, onde novas ‘coordenadas’ acontecem, sem traçar espaços fechados, o artista está sempre a contrapor um elemento inquietante à idéia de ordem. Sua ‘geometria’ é outra, e nela as figuras descrevem sistemas delirantes, subvertendo o caráter regular de qualquer método. Esta seria, afinal, a Ordem possível de um real em que tudo se entrelaça, “rios, afluentes, fontes e cabeceiras psíquicas que fluem e deságuam incessantemente sobre oceanos espirituais, com suas correntezas, marés, calmarias, ondas e tempestades” 2, ou seja, zonas onde improváveis associações podem ocorrer a todo instante, e cujo entrelaçamento nos leva a mundos impressionantes e fora das regras.

Os organogramas são uma série de desenhos onde se lê “Ontem, Hoje, Amanhã”, se apresentam em inúmeras configurações ramificadas e organizações singulares, e utilizam vários meios e técnicas, podendo ser ora sobre papel, ora diretamente aplicados sobre a parede. Trabalho recorrente na obra do artista, muito nos fala da circulação do tempo inscrito na contigüidade do espaço, rompendo a hierarquia cronológica, e ensaiando ali uma sensação rítmica e cinemática na superfície do desenho. Embora estática, a inscrição sintetiza perspectivas múltiplas em um só plano, como se pudéssemos absorver o curso total dos tempos em uma única mirada, o que, na genealogia da história, poderia nos remontar ao cubismo. Fato é que, na emergência ágil e aguda do cubismo, estava sedimentada ali a vontade de instaurar vivacidade temporal no plano. E não por coincidência, o advento do cinema é seu contemporâneo.

Interligadas por linhas sinuosas, no ‘organograma’ as palavras entrelaçam-se e alastram-se: o ‘ontem’ levando ao ‘amanhã’ ou ao ‘hoje’, em ordem aleatória e imprevista. A concepção de tempo, nessa obra, rompe a flecha direcional linear em que se concebia na tradição ocidental, com sua idéia intrínseca de seqü.ncia progressiva, tornando-se ondulatória e policrônica. Os tempos ali inscritos transformam-se em figuras espaciais deambulantes e permutáveis, e sua determinação homogênea na linha do tempo, onde antes se estendiam de forma unidirecional, reverte-se agora em uma navegação trans-temporal e em fluxo aberto.

Na versão apresentada no Museu Reina Sofia, Damasceno tornou a obra flexível à própria configuração espacial e semântica da instituição, além de ter transformado o organograma estático original em um móvel assumido. Presente, passado e futuro também convergem nas coleções dos museus; Goya está aqui e agora, tanto quanto Warhol, numa sinergia total dos tempos e espaços históricos. Situado desta vez na fachada do edifício, distribuído aleatoriamente por suas janelas, e disposto em displays luminosos que se dispersam em mais de uma centena de metros, o trabalho ‘ilustra’ o caráter não crônico da própria função do museu, com sua ausência de hierarquia e sentido de progresso. A versão atual também amplifica o senso fortuito do jogo de palavras, não apenas pela extensão da leitura aos efeitos da luz, mas, principalmente, por estarem os luminosos à mercê de um software que jamais os deixarão se repetir. Assim, do inicio ao fim da exposição, a seqüência do piscar desses luminosos nunca será igual, uma vez inscritos numa configuração pulsante e irreversível.

Como uma partitura de sons experimentais, que marca o tempo em freqüência descontínua e ritmo aleatório, a distribuição espacial na instalação desse ‘organograma’ também se indetermina e pulsa de forma contingente. E, nesse aspecto, a obra terá instaurado um paradoxo extra em relação a suas versões anteriores, uma vez que um programa digital, de bases científicas, terá sido acionado justo para a criação da aleatoriedade.

A localização do trabalho na fachada cria, além disso, um diálogo direto com a própria cidade: tempo e espaço labirínticos e à deriva, re-desenhando-se na textura desse dialogo com o ritmo frenético das metrópoles. O desregramento do tempo e a distribuição multidirecional do espaço, no ‘organograma’, respondem e enfrentam de perto a pulsação caótica das cidades contemporâneas, cujo cotidiano dispersivo parece regido por vetores de orientação enlouquecidos. O diálogo é ainda ampliado de forma irônica pelo fato de existir ao lado do museu um hotel, cujo nome, em anúncio luminoso também na fachada, é Medio Dia, um meio-dia polivalente e eterno, da manhã à noite, que, como o ‘organograma’, perturba e subverte o estatuto da repetição e da memória.

Na verdade, em todo o conjunto da obra do artista, circulam efeitos que se assemelham à condensação cinematográfica, pois que nesta se comprimem horas em minutos, ou vários locais e ações em uma mesma seqüência métrica de película. Em Damasceno, comprimem-se tempos remotos e imemoriais, atmosferas e espaços muito mais vastos, o que vemos e o que não vemos. Não sem motivo, alguns de seus trabalhos utilizaram a palavra ‘condensador’, como na série “Condensador com Sistema de Lentes”, iniciada em 1997.

Nos anos 1920, Aby Warburg propunha, nas pranchas de seu livro “Mnemosyne” 3, a justaposição de imagens advindas de varias épocas, o cruzamento de diferentes extratos da realidade, como forma de fazer interagir o que era visto em cada um isoladamente. A partir do encadeamento de figuras disjuntivas, da montagem de seus recortes nessa série de pranchas, Warburg pensava ativar relações entre camadas distintas da história, que o teriam levado a pensar conexões possíveis entre culturas desconexas, como, por exemplo, o Renascimento e o indígena do Arizona. A própria descontinuidade da colagem e sua simultânea correlação conceitual, apreendida pela montagem das imagens lado a lado, inscreviam o movimento entre tempos e espaços dispersos nas narrativas cronológicas da tradição, compondo o que ele chamava de ‘iconologia dos intervalos’. Em sintaxe francamente cinematográfica, feita a partir do corte e da edição de imagens, Warburg depreendia de suas associações aparentemente díspares o projeto de uma re-leitura produtiva da historia da arte, criando um movimento relacional e unívoco entre alteridades. Associações semelhantes foram exploradas, sem dúvida, no espírito dos assemblages e nas fotomontagens das vanguardas do início do século XX.

O parti-pris de José Damasceno encontra eco nesse tipo de construção. Realidades estrangeiras não entram em colisão em seu trabalho. Ao contrário, opera-se uma síntese inédita entre elementos disjuntivos, amalgamando suas especificidades numa nova identidade, numa terceira via, que, simultaneamente, acolhe e dissolve as diferenças do ‘outro’ na obra.

Diferente do cinema, entretanto, que trabalha com a sucessão, a obra de arte, sintética por natureza, opera na simultaneidade. O caráter expansivo e elástico que porventura possa estar incluso no conceito da obra é, portanto, da ordem indicial. E é justamente no domínio do índice que Damasceno se inscreve, permitindo que a obra nos lance os rastros de seu movimento, mesmo que um movimento ideal.

Em Damasceno, a escultura é também imagem. Há, ali, uma disposição em transcender a presença material dos volumes, em inscrever relações fantasmáticas acima do caráter físico das coisas, e uma determinação em tornar o representado uma mera ressonância da animação das idéias. O artista trata a imagem como se fosse possível abordá-la fisicamente e, inversamente, tenta extrair da coisa a sua potência de imagem. Essa operação parece bem próxima do conceito de ‘idealismo mágico’ de Novalis, para quem “se você não pode transformar as idéias em coisas exteriores, transforme então as coisas exteriores em idéias” 4. Dessa forma, o trabalho de José Damasceno é latência e evidência. O corpo da escultura tem realidade de fato, mas sua dinâmica não é tangível, sua matéria é, ao mesmo tempo, concreta e volátil; propriedades, afinal, tão similares às do cinema.

Em 2000, o artista realizou uma instalação paradigmática em sua trajetória, sobre a idéia desse fluxo condensado na economia dos volumes. Intitulada, não casualmente, de “Cinemagma”, a obra propunha correspondências incomuns entre matérias e signos fortuitos, cultivando, na massa monumental da estopa que compunha seu centro nervoso, uma potência fluida e movente. Ora concentrada, ora distendida, compondo uma arquitetura imaginária que se alastrava como filamentos líquidos pelo espaço, a estopa ganhava proporções imponderáveis no local, indicando fluxos espaços-temporais caudalosos e absurdos. Com claros efeitos cinemáticos, esse magma bruto e material propagava-se e indeterminava-se no espaço, em fluência contínua e dilatação dinâmica. Ambiente ‘pictórico’ composto por milhares de fios de cor, “Cinemagma” propunha ainda, e ao mesmo tempo, um lugar devassado e íntimo, real e onírico, mental e sensacional.

O fato de José Damasceno ativar constantemente cruzamentos de figuras e matérias inusitadas, freqüências de energias incompatíveis e flutuações de sentidos, em correspondências paradoxais que desestabilizam o senso comum, poderia levar-nos a uma reminiscência surrealista. Alguns trabalhos, como “Hipótese catenária” e “Crash of a prop”, ora expostos, parecem corroborar mais estreitamente esse paralelo. Porém, suas narrativas e sistemas fantasmáticos não dialogam com o idealismo selvagem de Breton, nem com o ilusionismo remanescente no trompe-l’oeil surreal. Em Damasceno, permanecem traços das pulsões do inconsciente e do transbordamento da realidade, associados, porém, a uma racionalidade improvável e desconhecida. O impulso surreal que sobrevive em Damasceno seria mais no sentido de um real subjacente, ou seja, não vinculado ao sur (sobre), que deu origem ao movimento, e que ultrapassa e renega socialmente o real, mas ao sub (sob), que desvenda camadas ‘embaixo’ da normalidade, em um campo marginal ao materialismo, como preferia George Bataille 5.

Essa abordagem do sub-real ainda faz sentido hoje, como forma de disseminar um pensamento viral contra o determinismo, e encarar a incerteza das sociedades. Na teoria crítica de Baudrillard, para quem obedecemos fielmente à idéia de uma realidade objetiva, à impostura e à histeria do real, não há mais como pensar o mundo com desenvolvimento linear, pois que tudo se precipitou em turbulência. Baudrillard diz que apenas um pensamento paradoxal, e não mais o pensamento crítico, poderia responder ao estado de catástrofe das sociedades atuais. Ora, um dos atributos da obra de José Damasceno é o de instituir paradoxos, o que, em princípio, amplia a poética de sua obra a uma questão, por excelência, ética.

As equações paradoxais que o artista propõe acionam, simultaneamente, as idéias, as coisas do mundo e o inconsciente, na tentativa de criar sistemas e ‘coordenadas’ para a fabulação, para as ‘aparições’. Seu fascínio pelos estados de passagem, por tudo o que movimenta fluxos entre mundos aparentemente desconexos, leva-o à criação de uma topologia inesperada, onde não há verificação plausível, em um reviramento das dimensões ‘normais’ do tempo, do espaço, e mesmo da representação.

Crash of a prop” simula concretamente um estado de passagem, uma progressão no tempo, uma linha de velocidade. As pastilhas de polipropileno que caem do teto em direção à xícara parecem fotogramas escolhidos e paralisados no desenrolar de um filme, que sabemos ter continuidade. Sem o fetiche que envolvia a xícara peluda de Meret Oppenheim, a sua institui outra ordem absurda, possivelmente mais intrincada, pois que aciona parâmetros de mesura científica, descrevendo, em termos físicos exatos, o movimento de uma queda livre, congelada em recortes métricos precisos. Essa descrição rebate, historicamente, com o “Nu descendant l’escalier”, de Duchamp, assumidamente inspirado nas cronofotografias e nas técnicas cinéticas em desenvolvimento à época, com o intuito de dar visibilidade a um corpo em movimento, com seus segmentos simultâneos e suas múltiplas aparências.

Crash of a prop” é uma torção na perspectiva euclidiana, uma outra perspectiva possível que, desta vez, se alia à força da gravidade e perde o horizonte, deslocando seu ponto de fuga para o chão. Algo que se vê ao mesmo tempo por cima, por baixo, e em seu próprio distender-se no tempo, ampliando a narrativa da cena. Nela, a representação esquemática da queda está no lugar mesmo da queda, operando a ‘con-fusão’ entre os termos do real e do representacional, enos lançando numa terceira instância, que desconhecemos.

Trocadilho imediato com splash of a drop (e lembremos que também Duchamp era fascinado pelos calembours, endossando na língua o caráter desviante dos objetos), “Crash of a prop” diverte-se com a iminência traumática da queda da pastilha sobre a xícara, cujo destino é se estilhaçar, ou seja, destruir-se como obra, ou como imagem. O splash of a drop, sabemos, é o momento último de saturação, momento da detonação de algo que ultrapassa seus limites, e desencadeia a catástrofe. No trabalho de Damasceno, esse instante é apenas intuído pelo espectador, que pressente a ‘morte’ anunciada do objeto, à maneira dos filmes de suspense.

Com formalizações instáveis, a escultura contemporânea não tem a clareza do passado, não se apresenta mais como um monolito, com sentidos determinados. Sem a estabilidade e a segurança em que se ancorava, reage ativamente à observação. No trabalho de José Damasceno, “nem há mais como se buscar uma relação de equilíbrio entre o factual e o ficcional. O pensamento não se detém, sempre havendo a possibilidade de se vislumbrar outros campos de reflexão” 7. O objeto poético funciona como forma de confronto com a objetividade do mundo, e tem uma ênfase especial na obra de Damasceno, pois que, ao lado do aspecto sintético, co-existe seu avesso: a proliferação. A proliferação talvez seja o modo de endossar a presença física desse objeto, contrariando a perda de sua substância na realidade social. Assim, ele alastra-se no espaço, percorre caminhos, dissemina-se em corredores, jardins, escadas, contagiando os lugares por onde passa, como uma epidemia. Os trabalhos “Fósforo” e “Piazza” são exemplares nesse sentido. A multiplicação dos bancos no jardim interno do Museu Reina Sofia, em “Piazza”, não é apenas questão de contrapor o nonsense aos dados do real, ou mesmo de fundar uma lógica imprevista ao banal, mas de revitalizar toda a topologia desse espaço, através da presença insistente do objeto. Além disso, o trabalho é um diagrama da própria arquitetura do edifício, revigorando, tautológica e poeticamente, seu desenho.

Há algo em “Piazza” que remonta à pintura metafísica de De Chirico, com seus espaços plenos de solidão e pensamento, tão distantes da iconoclastia do surrealismo de Breton. Como o mestre italiano, José Damasceno opta por construir uma ‘paisagem’ silenciosa, a despeito de sua pulsão imaginária prodigiosa. A figura renitente do banco de praça torna-se um monumento insólito, ganha valor de símbolo ou signo, cujo sentido é desconhecido, mas onde identificamos um certo humor negro e lúcido. Espírito análogo podia ser detectado na obra que o artista apresentou na Bienal de Veneza de 2007 – “Viagem à lua”, em que a atmosfera metafísica aos moldes de chiricianos era sensível.

Lugares vagos, perspectivas imprevistas e signos insólitos fizeram De Chirico ser um dos primeiros a realizar, em pintura, a poética moderna e, sobretudo, a confiar no poder da imagem. O italiano unia templos e pórticos greco-romanos à fumaça industrial, luvas de borracha e óculos escuros. O brasileiro reúne estatuária do século XIX a displays luminosos, cartões postais, xícaras e bancos de praça. Mas ambos são frutos de sociedades objetivas e catastróficas, que, quer pelo domínio da máquina, quer pelo da informação, ainda exigem da arte a beleza enunciada por Lautréamont: “belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, entre uma máquina de costura e um guarda-chuva” 8.

Ciência e delírio, precisão e deambulação, as ambigüidades se entrelaçam nas narrativas multilineares de José Damasceno, que navegam na convergência de tempos e espaços dispersos, e no cruzamento dos sentidos. O artista demarca ‘coordenadas’ para a construção de arquiteturas incomensuráveis, excitando o espaço vulgar pela intensidade do desconhecido. Lugares re-inventados pela dinâmica excêntrica da poesia, essas arquiteturas constituem um “domínio tenebroso e elástico que, por vezes se encolhe, por vezes se alarga, segundo a força irregular da imaginação” 9. Na precipitação do imaginado sobre a superfície do mundo, José Damasceno produz tensões entre qualidades distintas de espaço, condensa e propaga o visível em feixes de significações imprevistas, e faz do constructo uma ‘aparição’.

 

Notas e referências bibliográficas:

1-Damasceno, José – in anotações enviadas à autora.

2- Damasceno, José – in “Un altro attimo”, in catálogo da participação do artista na XXV Bienal de São Paulo,

Galeria Fortes Vilaça, São Paulo, 2002.

3- As relações do livro Mnemosyne ou Atlas, de Aby Warburg, com a questão cinética e cinematográfica foram

amplamente exploradas por Philippe-Alain Michaud, in “Sketches –Histoire de l’art, cinéma”, Kargo & L’éclat,

Paris, 2006, e in “Aby Warburg et l’image en mouvement”, Macula, Paris, 1998.

4- Novalis – citado por Patrick Waldberg no ensaio ‘Influence de la métaphysique sur le surréalisme: son

rayonnement’, in “Dada et surréalisme », Rive Gauche Produtions, Paris, 1981.

5- As diferenças de abordagem entre os conceitos de ‘surreal’ e ‘sub-real’, notadamente entre os pontos de vista

de Breton e Bataille, foram analisadas por Hal Foster, in “Le retour du réel”, La lettre volée, Bruxelas, 2005,

originalmente publicado como “The return of the real”, Massachusetts Institute of Technology, 1996.

6- Baudrillard, Jean – in “A troca impossível”, Nova fronteira, Rio de Janeiro, 2002.

7- Damasceno, José – in depoimento à autora.

8- Lautréamont – in “Les chants de Maldoror”, Bordas, Paris, 1970.

9- Poe, Edgar Allan – in « Eureka » (traduzido por Charles Baudelaire), Calmann-Lévy, Paris, 1926.