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2020
Recado ao parente: conectar nossos elos, 2020, de Gustavo Caboco
Por
Heloisa Espada

O caboclo – ou caboco, como se fala nos interiores do Brasil – é como uma bananeira ou um mamoeiro que cresce num meio urbano, cercado por muros. É um ser adaptado, como uma planta nativa que muitas vezes vive isolada num ambiente que não lhe é natural. Fruto da miscigenação entre o indígena e o branco, ou do negro com o branco, o termo tem uma conotação pejorativa, sendo muitas vezes usado para deslegitimar a identidade indígena. Gustavo Caboco, filho de uma indígena da etnia Wapixana, de Roraima, e um homem branco, me explicou isso. Ele adota o nome Caboco por considera-lo um território de passagem: “Na minha visão, “caboco” é um lugar. Um dos caminhos de retorno para ouvir a identidade indígena. Não entendo “caboco” enquanto raça, mas como trânsito, ao sair de um lugar ou pensamento branco engessado em direção a narrativas específicas indígenas. Procuro ressignificar este termo, como um possível canal para minha ancestralidade. Quando visualizamos Gustavo – Caboco - Wapixana entendemos o trânsito das palavras, dos lugares.”²

A mãe do artista foi raptada da aldeia Canauanim, próxima de Boa Vista, por uma missionária, em 1968, aos dez anos, passando a trabalhar como doméstica em Boa Vista e Manaus. Sua história é a de muitas meninas indígenas no país. Mais tarde, foi adotada por uma família de Curitiba, onde se tornou costureira –retomando o conhecimento de fiar adquirido na infância, quando vivia na aldeia –, se casou e constituiu sua família. Em 2001, ela conseguiu juntar forças e recursos para visitar seus parentes em Roraima, acompanhada dos filhos. Foi então que Gustavo, aos doze anos, se conscientizou de seu lugar como “índio na cidade”.³ Anos mais tarde, ele iniciou uma pesquisa artística que se dá como um processo de retorno às suas origens indígenas e, ao mesmo tempo, como construção de elos entre universos e cosmogonias que pouco se ouvem. A investigação ocorre por meio de desenhos, bordados, grafites, performances, poemas e vídeos, em trânsito constante entre os estados do Paraná e Roraima.

Recado ao parente: conectar nossos elos⁴, trabalho realizado a pedido do Programa IMS Convida, reúne trechos de vídeos produzidos em diferentes momentos. Um deles mostra cenas da abertura da exposição Netos de Makunaimî, com obras de Caboco e Jaider Esbell⁵, em novembro de 2019, no Museu de Arte da Universidade Federal do Paraná (MusA), em Curitiba. Os artistas aparecem junto da anciã Bernaldina José Pedro, mestre da língua e de cantos tradicionais Makuxi, além de símbolo da luta pela preservação da reserva Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Ela foi mãe de Jaider Esbell e avó de muitos indígenas com quem tinha ou não laços de sangue, pois, segundo eles, os verdadeiros elos de parentesco nascem de vivências, de ensinamentos e da espiritualidade. Infelizmente, pouco depois de Caboco finalizar seu trabalho para o Programa Convida, vovó Bernaldina foi vítima da Covid-19.

Trechos de outros vídeos de Caboco aparecem em Recado ao parente, entre eles o que mostra o artista plantando uma roça de bananeira no quintal de sua casa, em Curitiba, além de trabalhos recentes realizados durante a quarentena. Nesses últimos, ele aparece de máscara, sentado em frente a um painel de desenhos, segurando um par de sementes em frente dos olhos ou enrolando um fio vermelho em torno da própria cabeça, como se ele mesmo fosse um tradicional fuso indígena. Ele aparece também tocando um maracá e segurando um pano onde se lê “COMA colonial”. O trabalho é permeado por referências às origens e às vivências de Caboco. Os fios remetem ao ofício da mãe costureira e à tradição de tecer comum em muitas comunidades indígenas no país. As roças de bananeira foram por muito tempo uma das principais atividades de Canauanim, e, como o principal meio de subsistência, eram também símbolo de autonomia e liberdade. No vídeo, o artista dialoga também com o presente e a crise da Covid-19. Ele cita a primeira rádio web indígena no Brasil – “Faça como a Radio Yandê no abril 2020: escolha o parente” – incitando outras instituições a abrirem espaço para que mais indígenas exponham sua arte e atuem na arena política.

Recado ao parente se dirige a todos os indígenas brasileiros num momento de grande suscetibilidade. Nesse contexto, todos são parentes. E indígena, lembra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, é aquele que pertence originalmente à terra, o contrário de alienígena. O trabalho de Caboco convoca quem o assiste a aprender as formas de arte, de espiritualidade e de vida em comunidade dos povos que estavam aqui primeiro. Sua obra tem o potencial de deslocar a mulher e o homem brancos para a condição de “o outro” – nem indígena, nem alienígena. Do ponto de vista cultural, toda população do Brasil é cabocla, miscigenada, resultado da união e da tensão entre povos inimigos. Caboco traz a voz indígena para o primeiro plano e, ao fazê-lo, afirma que, na atual situação de “coma colonial”, no qual todos estamos implicados, o remédio passa necessariamente pelo reconhecimento do protagonismo histórico, da identidade cultural e da posse da terra pelos povos originais.

 

1 Agradeço a Gustavo Caboco pelos ensinamentos e pelos esclarecimentos essenciais para a escrita deste texto.

2 Depoimento de Gustavo Caboco para a autora, em e-mail de 30 de junho de 2020.

3 Idem.

4 Disponível em https://ims.com.br/convida/gustavo-caboco/.

5 Ver Ecolive, trabalho de Jaider Esbell para o Programa Convida: https://ims.com.br/convida/jaider-esbell/.