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2019
Ser arquivo
Por
Álvaro de los Ángeles

Quando Gilles Deleuze, referindo-se a Michel Foucault, escreveu que “um novo arquivista foi nomeado na cidade”, ele assentou o pilar de fundação de uma nova maneira de nos entendermos e de nos relacionarmos a partir de dados, informações e corpos, especialmente depois de Foucault ter declarado o fim simbólico da biblioteca como espaço sacrossanto do conhecimento, para anunciar que o arquivo viria a ser o substituto democratizador do pensamento. Um grande conhecedor das teorias de ambos, o professor Miguel Morey afirmou que o arquivo é aquilo a que recorreríamos para definir o que sabemos sobre os males de nosso tempo, uma vez que estes tivessem sido determinados. Jacques Derrida primeiramente disse e depois escreveu que o arquivo simboliza tanto a origem quanto o controle do poder. Em perspectiva, ele anteviu que o mal do arquivo se instalaria nas sociedades ocidentais de forma viral. Naturalmente, a arte contemporânea abraçou essas formulações de espaço, tempo e desejos como alguém que se converte a um novo dogma: sem olhar para trás nem avaliar as vantagens ou desvantagens futuras decorrentes de tais decisões.

O historiador Aby Warburg inventou uma “ciência sem nome” que reescreveria a história da arte com base em uma contiguidade harmoniosa entre imagens (em seu Atlas mnemosyne) tal qual constelações simbólicas relacionais; um arranjo que poderia ser replicado também com livros, como ele propôs em sua biblioteca sofisticada e obsessivamente organizada. Hanne Darboven e Gerhard Richter compuseram atlas de documentos e imagens que refletiam a complexidade da história alemã quanto ao choque ocorrido após a Segunda Guerra Mundial, quando só parecia ser possível refletir sobre o passado nacional através de uma espécie de terapia visual a partir da compilação daqueles documentos e daquelas imagens. Nesse caso, o número de elementos reunidos significou uma nova valorização qualitativa do luto. On Kawara insistiu na escrupulosa certificação do cotidiano como uma marca reconhecível: um registro do tempo vivido do qual ele seria prisioneiro e cuja ação pictórica se tornou, paradoxalmente, sua própria libertação. Ana Amorim inclui, além do registro de sua atividade, a ação do tempo diário em um espaço físico concreto e a hiperconsciência da passagem do tempo em suas ações, nas quais ela conta e anota os segundos que decorreram.

Na primeira edição da Internationale Situationniste, falava-se nestes termos sobre o que implicava a construção de uma situação: “A situação é feita para ser vivida por seus construtores”; e, mais adiante: “A situação é também uma unidade de comportamento no tempo. Está formada pelos gestos que compõem o cenário de um momento”. Ana Amorim não constrói situações strictu sensu, pois estas não se organizam coletivamente ou para uma coletividade, mas deixa claro que suas rotas, que mais tarde se tornam mapas criptografados e de difícil interpretação para o público que não viajou por esses espaços, são unidades de comportamento no tempo. Os elementos que constituem a assinatura da obra de Amorim são as tarefas diárias ligadas à sua vida e à compilação delas em mapas.

Para Borges, um mapa era um labirinto e sua solução, enquanto Baudrillard o entendia como um simulacro do espaço real que ele representava, ou seja, como uma suplantação. Didi-Huberman lhe dá uma função social ao tirá-lo do cercado sagrado da arte para colocá-lo sobre a mesa: o tabuleiro de um jogo de ação coletiva que ensaia o simbólico através da partilha de instruções derivadas do real. Mas, acima de tudo, um mapa é a certificação daquilo que se mostra originalmente como impossível de abordar e decifrar, a fim de concentrá-lo em um espaço reduzido e torná-lo compreensível. Uma tradução que desenha o espaço e comprime o tempo – algo como o que Ana Amorim sintetiza com sua contribuição rotineira para o mundo.

Seria conveniente começar do princípio, com o compromisso da artista brasileira (São Paulo, 1956) com o próprio trabalho. Em 2001, ela produz uma peça conceitual que é, de fato, um contrato (Art Contract) pelo qual se compromete a não exibir nenhum de seus trabalhos em qualquer espaço público ou privado que utilize uma marca ou um logotipo. Mas essa atitude, na verdade, teve início em 1988, quando Amorim assumiu a indelével simbiose entre sua vida pessoal e sua produção artística. Esta seria o resultado daquela, que, por sua vez, já não poderia mais ser a mesma depois de ter ciência de que qualquer coisa que a artista vivesse, por mais banal que pudesse parecer, se tornaria uma obra de arte ou de alguma forma integraria sua produção. Seus Map Books são a compilação dos mapas feitos a partir do registro de suas caminhadas e tarefas diárias – a cada dia, um mapa; a cada ano, um ou vários livros. Assim foi durante os dez anos de seu projeto 10 Year Performance Project 1988-1997. O contrato esteve em vigor até 2016, e agora, ao expor pela primeira vez em uma galeria e também na Espanha, suas posições pessoal e profissional são bem diferentes, mas sua análise e seu registro obsessivo do tempo persistem, inabaláveis.

As ações – qualquer uma – inserem o tempo no espaço. Agem como o som ou de forma semelhante à da música. As performances de Ana Amorim são, em essência, uma análise desse componente temporal que toda ação carrega implicitamente. Em seus Counting Seconds Performance, o que ela faz é contar os segundos durante várias horas. Para cada segundo, uma pequena marca horizontal escrita na página de um caderno. Essa é uma prática que ela desenvolve em espaços públicos (a artista se senta a uma mesa e um caderno é preenchido com linhas) e também como uma ação cotidiana. Todos os dias, durante uma hora, Ana Amorim conta os segundos e os anota. Quando observadas em perspectiva, essa paixão pela passagem do tempo e sua obsessão em registrá-lo derivam, de certa forma, das práticas também diárias realizadas pelo pai da artista. Ele transformou a casa da família em um espaço habitado por relógios e calendários; foi um caminhante que amava a natureza e que, durante e após suas caminhadas rotineiras, anotava as condições climáticas, o espaço percorrido, as horas e minutos gastos... O tempo é mostrado em um processo constante de destilação.

A artista designa seus mapas e colagens com um número que inclui vários itens, os quais nem sempre são fixos ou usados na mesma ordem. Nessa espécie de código numérico, podemos vislumbrar a data ou a numeração dos desenhos ou das obras, mas também outras figuras que correspondem aos dias decorridos a partir de certas datas importantes de sua vida (casamentos, divórcios, procedimentos médicos etc.) ou aos dias que restam para o fim do ano em curso (ou do desenho em questão). Tudo está escrito; qualquer ação diária que ela realize aparece refletida nos mapas como uma constatação de sua existência, com o objetivo de “parar a vida” e tornar-se plenamente consciente de sua passagem. Raramente temos a oportunidade de descobrir um trabalho artístico de tal magnitude – representando uma vida inteira dedicada à sua própria consciência vital – tão de repente e de forma tão variada e extensa. Poucas vezes nos são apresentados exercícios vitais e artísticos tão irremediavelmente fundidos por tais coerência e detalhe. Ana Amorim não é apenas uma artista que trabalha no âmbito – tão recorrente e também tão desgastado – do arquivar; ela é um arquivo em si mesma, e sua principal ação, ela parece nos dizer, é a de ser arquivo.