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2024
Surge et veni
Por
Antonio Gonçalves Filho

Uma nova geração de pintores brasileiros, entre 25 e 34 anos, é apresentada nesta exposição, Surge et veni, projeto da Millan para valorizar artistas em começo de carreira, alguns inéditos no circuito e outros em processo de assimilação pelo mercado. Isso justifica, de certo modo, o título da coletiva, inspirado numa passagem do Cântico dos cânticos, retrabalhada musicalmente por Monteverdi, em 1610.

No trecho em questão desse clássico poema de amor, uma jovem é convidada a conhecer os aposentos do rei Salomão. Trabalhadora rural, queimada de sol, a jovem é recebida com pompa e recompensada por sua persistência. “Surge, amica mea, et veni” [“Levante-se, minha amiga, e venha”], convida o tenor no primeiro moteto (Nigra sum) de Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi. Nesse convite está implícita a poética promessa de que a estação das chuvas passará e que o inverno dará lugar à primavera.

Surge”, desde o uso da tradução latina dos textos do Velho Testamento na obra de Monteverdi, incorporou novas metáforas. Em Monteverdi, o termo latino “surgere” tem o sentido original da Vulgata, de erguer-se, de ascender. Na mostra, ele entra associado à ascensão de cinco jovens pintores na aurora da vida profissional, nesse estado latente que o latim antigo definia como “latēre”, “estar escondido”.

Três desses artistas são paulistas: Bruno Neves, Lucas F. Rubly e Thiago Hattnher. As duas pintoras, Beatrice Arraes e Rayana Rayo, nasceram, respectivamente, em Fortaleza e Recife. Beatrice, a cearense, é a mais nova da turma. Rayana, a pernambucana, participou igualmente de exposições no Nordeste.

O que une dois dos três pintores paulistas, curiosamente, é o apego tanto à escola metafísica italiana (particularmente Morandi) como, mais remotamente, aos integrantes e seguidores de escola de Barbizon, assim conhecida por ter sido ativa (entre 1830 e 1870) na cidade de Barbizon, na fronteira da floresta de Fontainebleau, reunindo pintores de paisagens.

Mas, ao contrário dos pintores de Barbizon (Daubigny e companhia), Thiago Hattnher e Lucas F. Rubly não praticam a pintura “en plein air”, ou seja, ao ar livre, mas confinados em seus ateliês. São paisagens construídas com base na memória dos lugares, em particular (no caso de Hattnher) a estrada que liga São Paulo a São José do Rio Preto, onde passou a infância, rememorada em telas a óleo que registram as impressões remanescentes desse deslocamento. Suas obras mais recentes recriam capas de livros de artistas, como a que homenageia o músico e compositor norte-americano John Cage (1912-1992).

Já Lucas F. Rubly tem como interlocutor histórico o pintor inglês de vistas portuárias Alfred Wallis (1855-1942) e, entre os modernos, Morandi (1890-1964), evocando mesmo o clima das paisagens de Via Fondazza pintadas pelo italiano nos anos 1950.

Bruno Neves, o terceiro paulista, adota outras referências. O processo embrionário de sua pintura, em 2015, dirigiu seu olhar para artistas como Judith Lauand e Mira Schendel, além de nomes históricos do movimento neoconcreto (Lygia Clark, entre outros). Sua pintura, embora evocativa, sugerindo uma conexão com a paisagem circundante, é fundamentalmente ancorada na geometria.

Beatrice Arraes, que abriu recentemente sua primeira individual, em Fortaleza, pesquisa o design popular e incorpora signos gráficos dessa cultura. A memória da passagem do tempo é seu eixo temático, o que justifica o apreço também pela pintura de Morandi, tal qual os artistas paulistas aqui mencionados.

Rayana Rayo, filha de pintor, produz telas abstratas que, frequentemente, aludem a experiências existenciais (e, com efeito, seus autorretratos constituem uma forma de autoconhecimento, como em Rembrandt). Nesta exposição, ela mostra suas mais recentes pinturas, que operam num registro orgânico, visceral.