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2012
Thiago Martins de Melo
Por
Paulo Herkenhoff + Clarissa Diniz

O desejo na obra de Thiago Martins de Melo – fora da simetria entre voyeurismo e exibicionismo - só tem paralelo no Brasil na obra de Maria Martins (L’impossible), Flávio de Carvalho (Nossa Senhora do Desejo) e Adriana Varejão (Filho bastardo). A fotografia de Alair Gomes, por exemplo, é o êxtase do voyeur e a produção de Antonio Dias na década de 60 é a violência do voyeur – são dois regimes econômicos do desejo visível. No entanto, a primeira instância na pintura de Martins de Melo é a exposição de si mesmo. Por isso, a qualidade dessa explicitude não pode ser comparada à recatada Louise Bourgeois. Só Georges Bataille - Histoire d’O, Madame Edwarda, L’Érotisme - daria conta de tanta complexidade. Fillette de Bourgeois é o aparato genital do homem (para ela, “o frágil absoluto”) tão exposto como o da mulher em L’origine du monde de Gustave Courbet e Iris de Auguste Rodin. A exposição hiperbólica, direta e íntima, não é crueza da mecânica, mas a relação afetiva e violenta com o alvo (o alvo sexual está sob o domínio de uma zona erógena). Courbet pintou antes de Freud - a ciência apenas começava a compreender o psiquismo do desejo. Thiago Martins de Melo põe Courbet, Rodin e Bourgeois em sua cena pictórica. Bourgeois esculpe depois de se confrontar com a dúvida de Sigmund Freud (a única pergunta que ele diz não saber responder seria o que deseja uma mulher) e a afirmação de Jacques Lacan (a Mulher não existe) e entendê-las a seu próprio modo. A pintura de Martins de Melo desvela tais limites.

A pintura de Martins de Melo, como a obra de Antonio Dias ou Tunga, é campo da fantasmática. Incorpora a carnalidade como o corpo sexualizado do pintor transferido à pintura. Sem essa aparente redundância reiterativa da carne não se dará conta das instâncias do desejo e do corpo, do signo material da pintura e da relação fenomenológica entre pintor e pintura lançada por Paul Valéry e conceituada por Merleau-Ponty. O pintor para Valéry e na fenomenologia de Merleau-Ponty de L’Oeil et l’esprit empresta seu corpo à pintura[1]. O corpo emprestado pelo pintor Martins de Melo é o corpo sem órgãos, a máquina desejante[2]. O desejo se encarna na vontade material. Essa temperatura de obra compõe certa história do olho: afinal, L’origine du monde não pertenceu a Jacques Lacan? Afinal, Lacan não se casou com Silvia, ex-mulher de Bataille? Esse Thiago, pintor-psicólogo que descrê em pudor moralista em pintura, pode estar no lugar de Jacques ou de Georges, ou dos dois? Não há como classificar o inclassificável. Não há o imencionável, o socialmente indizível por recato, privacidade ou moralidade, mas também não há auto-exposição egótica: isto é o próprio território da fantasmática que não vem em imagens mentais nem verbais, mas se encarna como pintura. O que se vê é a emergência do possível. Surge com uma violência avassaladora, com uma urgência de visibilidade capaz de construir afasia em resposta ao olhar. Despida de estratégias de dissimulação (a robe mouillée da Vênus de Milo seria o oposto dessa estratégia de enunciação). Um quadro expande as possibilidades visíveis do íntimo.

Diante do canibalismo melancólico de Pierre Fédida – o luto antecipado decorrente da vontade de devoração do parceiro no coito[3] - conclui-se ser preciso expulsar a morte. É necessário espancar o esqueleto e não dançar com ele como em Ensor e em toda Todtanz da cultura europeia nórdica. A batalha de tesouras e a linguagem das lâminas, entre a castração e o rompimento do hímen. Sem culpa e sem qualquer vergonha, como se personagens de Georges Bataille se tornassem vivos[4]. Os sentimentos de culpa, vergonha ou repulsa transferem-se para cada espectador, se for o caso. Não há estratégias de choque, mas de presentificação da cena.

Fundamentalmente, Martins de Melo pinta dípticos. A separação entre duas telas não decorre da intenção ingênua de produzir um díptico em que duas partes se conjugam na formação de uma imagem, nem provém da penúria (não dispor de uma tela maior). Isto é corte. Daí ser a cisão da superfície uma operação indissociável. A linha orgânica de Lygia Clark reitera a separação do que se deseja unido e uno no quadro, o abismo da falta e fenda da incompletude. Pulsões de vida, movimentos da libido, fantasmas de desejo - o signo pictórico é trabalho libidinal, como na escultura de Bourgeois. O esforço do pintor é manter a imbricação entre o insconciente – um possível projeto de uma escrita na linguagem do inconsciente e não sua ilustração - e a experiência pulsional do pictórico, do inescapável confronto com o signo material da linguagem. Essa relação mantém a coesão tramada entre significante, significado e significação.

 

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[1] Maurice Merleau-Ponty. L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1986, p.

[2] Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia. Transl Robert Hurley, Mark Seem and Helen R. Lane. Minneapolis, Minneapolis University Press, 1998.

[3] Pierre Fédida. Le cannibale mélancholique in Destins du cannibalisme de Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris, Gallimard, 1978, vol. 6, pp. 123-127.

[4] BATAILLE, Georges. Guilty. Trad. Bruce Boone. Venice, The Lapis Press, 1988, p. 13.