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2022
Tudo de novo
Por
Victor Gorgulho

“Qualquer forma é aceitável se é verdadeira.

E sendo verdadeira, é ética e estética.”

(Josef Albers)

 

“A pintura está morta!”, anuncia uma desconhecida voz que espalha a notícia aos quatro ventos em um misto de excitação e torpor, como em um indigesto déjà-vu repetido em alto e espalhafatoso som. Silêncio. Todos parecem ouvir a tal enigmática voz, mas, solenemente, ignorá-la. Alguns reviram seus olhos, outros deixam escapar pequenas risadas, muitos sequer dão atenção mínima à voz que, antes eloquente, dissipa-se em meio a cacofonia de uma multidão.

A cena é imaginária, é claro, ainda que absolutamente verossímil e reincidente desde distintos momentos do decorrer do século XX até mesmo os dias atuais. São praticamente incontáveis as ocasiões em que a pintura – e a arte, em si, de um modo geral – foram dadas como mortas, esgotadas, ultrapassadas e por aí além. Vítimas tanto de súbitas mortes teóricas ou de engenhosos homicídios dolosos por parte de artistas, críticos, historiadores e tantos mais.

Na contramão destes múltiplos arroubos estéticos (por vezes histéricos?) que perpassam as mais diversas narrativas da historiografia da arte, a prática de Dudi Maia Rosa (São Paulo, 1946), busca afirmar, e constantemente reafirmar, seu singular compromisso com uma radical subversão dos códigos tradicionais da prática artística no campo da pintura. Em outras palavras, como um “pintor sem pincel”, um alquimista da luz que se utiliza de uma gama de materiais que em nada relacionam-se às técnicas e materiais típicos do fazer pictórico, Maia Rosa ainda assim pode (e deve) ser considerado um pintor par excellence.

Ainda que o vasto corpo de sua obra artística se desdobre em suportes e mídias diversas, o artista dedica-se, desde a primeira metade dos anos 1980, a uma produção de trabalhos que encontram na resina pigmentada e na fibra de vidro, predominantemente, suas matérias-primas irrevogáveis, absolutas. Através da experimentação contínua e ininterrupta destes materiais em diferentes processos em seu ateliê, Maia Rosa tornou-se notoriamente conhecido por obras que “camuflam-se” enquanto pintura – ainda que tampouco reivindiquem para si mesmas qualquer status ou classificação incontestável.

São superfícies bidimensionais (quadros, telas, vá lá), de diferentes escalas, tamanhos e cores, usualmente fraturadas, errantes, pontiagudas, conscientes de seus vazios e falhas. Objetos pictóricos, receptáculos de luz, caixas de cor, coisas-pinturas, criaturas nada austeras nem intransigentes, pacificamente repousando sobre as paredes sem medo algum de julgamentos ou das inúmeras sensações passíveis de despertarem naqueles que as fitam em estranheza ou em quem as observa fixamente, em estado de semi-hipnose visual, atravessados por pequenos e deliciosos transes cromáticos.

Tudo de Novo apresenta um conjunto inédito de cerca de trinta trabalhos, aqui apresentados e reunidos de maneira inédita dentro da trajetória de Maia Rosa. Ao passo em que as obras em maior escala – em tons de amarelo, azul, roxo, rosa, branco, verde e além – ganham o espaço em um jogo de aparições que conjuga luz, texturas e exuberância, são obras que convivem também com um vasto grupo de outros trabalhos, em formatos menores, também concebidos a partir do uso da resina, mas capazes de acolher, em suas melindrosas e por vezes intrincadas composições, materiais outros – de naturezas, origens e aparências diversas.

Nessas pequenas telas, vemos cacos de vidro, pedaços de alumínio, chapas de latão, lascas de cerâmicas, restos de plástico e até mesmo objetos diminutos que se fundem à resina, dando origem a composições ruidosas e frequentemente irresolutas. Aqui vemos rasuras, rabiscos, fraturas expostas, restos e rastros derivados da prática diária do ateliê do artista. Mas não se tratam, no entanto, de esboços anteriores de outras obras nem tampouco são assemblages randômicas que justapõem os excedentes materiais do ateliê do artista.

Não há nelas, assim como em suas “primas-irmãs” maiores – mais polidas e pomposas, talvez – desejos conflituosos de afirmação perante o mundo que as observa. Talvez sejam, na realidade, ainda mais rebeldes e impacientes, prestes a repreender aqueles que as fitarem com incredulidade, de olhos estupefatos ou descrentes. Enfant terribles que são, estarão prontas para desgarrarem-se das paredes e tomar o espaço de assalto, numa inacreditável insurreição das obras de arte contra vãs classificações teóricas que ainda teimam em aprisioná-las e reduzi-las em suas complexidades.

Delírios jocosos à parte, o que Maia Rosa nos permite testemunhar, aqui, é o inédito encontro entre duas esferas de seu trabalho que, até pouco, foram compreendidas pelo próprio artista como distantes e distintas. Trabalhos, à primeira vista, conflitantes de pontos de vista formais, conceituais e mesmo afetivos; pessoalmente a espelhar as fraturas, medos e inseguranças daquele que as concebeu. Uma exposição, afinal, nunca é apenas dos trabalhos em si, mas também do artista que os criou, igualmente exposto e frágil diante dos olhos que o miram.

Em uma janela temporal que reúne obras realizadas nos últimos cinco anos, aproximadamente, o artista nos convida a uma experiência integral de fruição deste conjunto de trabalhos, sem buscar, no entanto, impor um discurso engessado ou unívoco. Estabelecendo relações ativas, testemunhamos tanto suas fricções e aproximações materiais, formais, cromáticas e afins, quanto suas insuspeitadas afinidades (eletivas ou não) em um fino processo de aproximações que se dá ainda no ateliê, mas, especialmente, na vivência do espaço expositivo. Tudo de Novo, frase escrita – quase rasurada – pelo artista sobre a superfície despedaçada de uma das pequenas obras, sintetiza o disparador formal (e pessoal, como não?) por trás das intenções da presente mostra: a constituição de um sistema aberto de significantes e significados à espera de novas camadas de significação.

Na sala expositiva do segundo andar, um recorte pontual da produção de aquarelas de Maia Rosa, frutos de exercícios de observação de seu próprio entorno, em sua casa-ateliê, divide o espaço com um monitor de TV que exibe pequenos vídeos gravados pelo próprio artista em seu celular, onde o vemos dançar livremente, coreografando seus passos pelo espaço de seu ateliê. É ali, no local de seu labor diário, onde o sucesso e a falha entrecruzam-se diariamente, que o artista parece tomar consciência de uma espécie trôpega de seu próprio gesamtkunstwerk, de sua obra de arte total, da síntese integral de sua prática artística.

Dudi Maia Rosa sabe – qualquer artista sabe – que é preciso encarar o ateliê, dia após dia, atravessando-o em seus questionamentos e dúvidas que teimarão a povoar a nebulosidade espessa dos pensamentos de cada um. Maia Rosa sabe que é preciso mesmo fazer tudo de novo, sempre, encarando a si e a seus fantasmas, concebendo seus belos e complexos seres de luz e de sombras; criaturas que irão continuadamente recriar a si mesmas e a seu próprio autor.

Tudo de novo, uma vez mais, outra ainda além, e assim adiante.