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2024
Um centauro na cidade
Por
Antonio Gonçalves Filho

Saint Clair Cemin sempre amou o Modernismo e integrou elementos desse movimento em seu trabalho. Prova disso é o interesse dele pelo escultor franco-germânico Hans (Jean) Arp (1886-1966), perceptível especialmente na exposição Ser híbrido, de Saint Clair, que também evoca a presença da escultura grega antiga em sua obra e seu desdobramento entre os contemporâneos.

As esculturas da exposição tanto têm a ver com o período arcaico grego, que marcou a libertação da escultura dos blocos que encarceravam as figuras egípcias, como também conservam o espírito dadaísta que identifica Arp, revelando vida interior, movimento e tensão, características que marcaram as obras tridimensionais na Grécia antiga.

Elas são pequenas, mas poderiam ser de grandes dimensões, adverte o artista.  Exemplo disso é Capoeira, bronze patinado que, como indica o título, faz referência a uma expressão cultural de origem africana, cruzamento entre dança e arte marcial. Segundo o autor, a obra deveria alcançar quatro metros de altura, quase o dobro da altura da Vitória de Samotrácia do Louvre, obra-prima do período helenístico.

Duas outras esculturas da exposição têm simetria bilateral (Spinario e Panguri), ao passo que a estrutura das demais é circular. Infante, na descrição do autor, deve “girar ou dar cambalhotas quando caminhamos em volta da escultura”. Em termos analógicos, seria uma obra fronteiriça na antiga Grécia, que adotou os motivos curvilíneos no período orientalizante, refletindo a influência fenícia. 

O fato de Saint Clair viver na Grécia parte do tempo familiarizou-o com essas formas arcaicas. Na escultura Panguri, por exemplo, vemos a forma híbrida de um cavalo, um avião e um menino, uma “quimera”, segundo o autor, inspirada em sua infância, povoada de cavalos e teco-tecos de aeroclubes. A figura do centauro, em que o lado racional do homem tenta controlar o instinto do animal, trata desse equilíbrio delicado que a criança perde quando cresce e vê desaparecer essa figura mitológica na poeira dos tempos.

As peças da exposição usam materiais clássicos da escultura, como o bronze (Spinario, Nuvem onça e Infante). A ideia de criar algo usando apenas o computador não parece ser uma opção para Saint Clair, para quem a execução física é um componente vital na construção de uma obra.

“O meu ponto de vista”, conclui o artista, é que a “arte não busca a si mesma, não busca meramente ser interessante”. O que ela quer, observa ele, “é a realidade, a verdade do ser e do mundo”. E, primordialmente, quer surpreender o espectador. As peças desta exposição surpreenderam primeiro o artista: ele se deu conta de que todas elas estavam estreitamente ligadas aos seus anos de infância. Foi “uma epifania fulgurante”, segundo sua definição. E não só para ele, é possível dizer.

 

Há peças na exposição que evocam o período clássico e arcaico da escultura grega, em particular criaturas míticas, como cavalos, que na Grécia antiga tinham um papel fundamental como signo de nobreza e altivez. Naturalmente, o fato de ter morado numa ilha grega contribui para tornar essa relação mais estreita. No entanto, além dos cavalos esculpidos nos monumentos gregos, deve haver outras razões para ter atualizado essa tradição. Qual seria a principal?

O mundo é repleto de símbolos. Sua função é pôr a alma humana em contato com essências. Uma civilização deixa sua marca, e aquilo de mais valor perdura por séculos; às vezes é esquecido, mas em seguida renasce. Em Nova York, por exemplo, com grande frequência encontramos as três ordens da arquitetura grega, e nossas línguas são repletas de helenismos.

Ter vivido parte do ano na Grécia me familiarizou naturalmente com essas formas arcaicas. Elas impõem-se gentilmente, e eu, sem sequer notar, faço obras que se aproximam daquelas pré-clássicas. Na escultura Panguri, vemos uma quimera de cavalo, avião e menino. Os trabalhos nesta exposição são inspirados por minha infância, e esta, como na Antiguidade, era povoada por cavalos, e também pelos “teco-tecos” do aeroclube de Cruz Alta, que eu frequentava para ver decolarem os pequenos aviões.

O cavalo é um símbolo poderoso, pois a síntese de cavalo com homem transforma um ser humano efetivamente num centauro. O centauro é uma realidade tangível, e essa foi discutida de maneira poética e perfeitamente realista no livro O gaúcho, de José de Alencar. Se o centauro não é realizado integralmente, o cavaleiro está em perigo. A unidade com o animal é tão necessária como a do músico com seu instrumento, que, na sua ausência, faz com que a música resulte ruim.

Existe uma trivialização do símbolo quando ele é tomado apenas na sua dimensão epistêmica e raramente na sua ontologia, isto é, como uma coisa que de fato existe no mundo e dele participa. O símbolo, a síntese e mesmo a simbiose existem como realidade muito além do conceito, do signo. Essa ideia é central para a compreensão da arte, na minha opinião.

Assim como na escultura grega antiga, que com frequência recorria a seres híbridos, as esculturas de sua exposição se aproximam da tentativa de Hans Arp de cruzar fronteiras e lidar com um mundo em transformação, se pensarmos na série que Arp começou em 1958 (chamada informalmente de Hermafroditas) e que trata justamente dessa quebra de barreiras formais ou culturais. Fale um pouco dessa reverberação das formas orgânicas de Arp em sua escultura.

Tenho grande afinidade com a escultura de Arp por sua naturalidade. Sinto que a escultura, como ímpeto ainda na antecâmara da mente do artista, quer dançar. E já, mesmo antes de ser, sabe que dança quer, e seduz o artista para permiti-la. Como dizes, aí já não é mais caso de fronteiras ou de limites convencionais. Isso é oriundo da própria realidade, que não sofre dos mesmos limites da percepção e muito menos da linguagem (que impõe armaduras reluzentes e articulações sobre a realidade). O Ser é mole, esponjoso e pegajoso. Se o artista se deixa fundir com a realidade, a obra imita essa realidade, e essa imitação pode ser quimérica, hermafrodita, xifópaga, e cantar antigas canções que surgem como de um sonho. As coisas entrelaçam-se como numa dança de polvos, como numa emulsão em que tudo se une e se separa conforme o momento.

Aquelas divisões nítidas, entre nós e os outros, entre nós e as coisas, só existem nas convenções da linguagem, com seus verbos e predicados. Na realidade, não há separação total entre as coisas; elas não se articulam como peças de uma máquina, mas como órgãos de um só corpo. Por isso a arte pode ser apreciada pelo próprio corpo, e algo do artista pode passar efetivamente para o público.

As peças de sua exposição usam materiais clássicos da escultura, como o bronze. O uso dos materiais segue um princípio de estabelecer um contraponto entre as esculturas mais “orgânicas” e formas que remetem a relevos?

Sempre usei todas as técnicas à minha disposição, principalmente para ampliar esculturas. Mas faço os modelos originais à mão, da forma mais tradicional, isto é, esculpindo em madeira, pedra, ou modelando. A ideia de criar algo usando o computador, por exemplo, me é impossível. Tentei no passado, mas o resultado foi ruim, e a vibração, pior ainda. Vejo o resultado de arte concebida e criada no computador e os problemas são óbvios: as escolhas são tão abundantes como gratuitas.

Predomina hoje certa indistinção entre escultura e instalação, ditada em especial pela incorporação de novos materiais além dos tradicionais (mármore, bronze). Uma variedade enorme desses materiais (PVC, aço, concreto) e as dimensões cada vez mais gigantescas das obras, além do uso de novas tecnologias, têm contribuído para expandir esse território em que atuam artistas multidisciplinares como o britânico de origem indiana Anish Kapoor ou a nigeriana Otobong Nkanga. Como você imagina o futuro da escultura, considerando esses exemplos?

Em São Paulo, em 1971 ou 1972, fui introduzido à arte conceitual por um amigo artista espanhol. Ele me explicou o que era, dando alguns exemplos. Depois vi o trabalho de Lydia Okumura e de outros conceituais da época. Esse era um tipo de arte que me parecia próximo do teatro. Um teatro onde os atores eram os componentes da instalação. 

As instalações de Joseph Beuys na sua retrospectiva de 1979, no Guggenheim em Nova York, foram para mim uma experiência transformadora. Cada uma das obras mostradas era como uma nova abertura sobre um mundo novo de significação misteriosa e, ao mesmo tempo, íntima e urgente. Ainda não vi nada que se aproximasse disso, a não ser a grande arquitetura. Os ambientes criados por Gaudí, as catedrais góticas, o interior dos templos egípcios ou as ruínas gregas de Pesto. Existem ambientes evocativos, estranhos e encantadores; eu os vivencio em alguns de meus sonhos. Um dia, talvez, poderei criar algo que se aproxime disso. Qualquer coisa que se diga sobre a escultura em geral, a instalação em geral, poderá ser desmentido, ou agora ou no futuro, por algum artista particular. A arte, a meu ver, chega ao universal pelo caminho do particular, daquilo que é único, pessoal. Por que uma pintura de quarenta centímetros não pode ser vista como uma instalação? Algumas pinturas de Dalí ou de De Chirico certamente podem. Gosto de Anish Kapoor, e não conheço a obra de Otobong Nkanga. Mas, como dizia, até agora, de instalação nada vi que se compare com Beuys. É uma questão de intensidade, de emoção, de mágica.

Críticas ao uso da paródia na escultura contemporânea são frequentes, por parte não só dos analistas, mas também dos próprios artistas. Para citar um deles, o escultor britânico Jonathan Monk. Algumas de suas obras em aço inoxidável trazem referências críticas a Jeff Koons, em particular aos seus cachorros e coelhos infláveis. A paródia e a iconoclastia não tiram, de certo modo, a força da escultura?

O problema está na ideia. Aliás, às vezes me pergunto se “uma ideia grosseira” não seria um pleonasmo. Quando o artista se destaca da realidade, do Ser, que está fora e dentro, presente como sua própria alma, e em vez disso se apega à mecânica da representação, tudo pode vir à tona, principalmente aquilo que não pesa muito. Nesse caso, o humor vira pastelão, os temperos são excessivos, as cores, incontroláveis. Uma arte que pode ser “contada” é uma que já não oferece mistério ao artista e, provavelmente, tampouco à crítica.

Tenho dito que o símbolo é aquilo que une a alma a uma essência; ora, se isso é substituído por um signo que une a mente a uma ideia, o que temos é uma operação que se quer inteiramente no domínio da informação, da representação, e não da ontologia. Tudo tem, porém, uma existência real – portanto, profunda –, mas, se a intenção do artista já é superficial, então se chega ao “lugar-comum”, à ágora. Isto é o que chamamos “pop”, e sua maior virtude é o uso de uma moeda corrente e de uma língua franca, o que dá a todos uma agradável sensação de pertencer a uma comunidade.

O conforto é inimigo da força, pois esta só existe quando há necessidade de ser exercida, quando ela é testada.  Os movimentos do passado, como o Impressionismo, e mesmo antes, o Naturalismo, foram verdadeiras revoluções culturais, contra academias confortáveis. 

A paródia é contrária à arte. Ela só reconhece a superfície, enquanto a arte quer realidade e profundidade. A arte quer o que não se vê, a paródia não sabe e nem quer saber que domínio invisível possa existir. O iconoclasmo é o mesmo que a paródia, confunde o ícone com o espírito.

Há uma diferença fundamental entre a ironia e o sarcasmo, ainda que sejam confundidos com frequência. A ironia reconhece um ponto de vista e, delicadamente, oferece outro, às vezes contrastante com o primeiro. Ela pode oferecer uma perspectiva, o que pode levar a certa profundidade do olhar. Já o sarcasmo, que é sinônimo de paródia, nada oferece além de um exibicionismo adolescente. Isso significa apenas uma necessidade de inserção num grupo.

A função da arte é algo a ser discutido; cada artista tem sua visão a respeito disso e a transmite por meio do seu trabalho. Mas em uma coisa eu creio: essa função, seja ela qual for, não é a chacota.

A relação simbiótica entre escultura e arquitetura, especialmente na era pós-minimalista, tem gerado certa intolerância por parte do público, considerando a rejeição da presença, em vias públicas, de grandes esculturas de nomes consagrados, como o de Richard Serra. Você acha que a era Claes Oldenburg e Thomas Schütte de obras monumentais chegou ao fim?

Eu me lembro perfeitamente da obra de Richard Serra que foi removida de onde tinha sido instalada, na Federal Plaza em Nova York. Conversei com ele na época, que estava amargurado pela rejeição de seu trabalho. Não quis dizer, para não ofendê-lo, mas o povo tinha razão. Serra é um grande escultor, e seus trabalhos, verdadeiras instalações, são maravilhosos, sensíveis e mesmo femininos, apesar de seu peso absurdo. No entanto, aquela instalação, de uma barreira cortando o círculo onde os funcionários iam se sentar para comer seus sanduíches na hora do almoço, era realmente agressiva. Houve uma revolta popular contra aquela coisa que vinha, como disse um desses funcionários, apenas lhes mostrar uma realidade alienante que eles conheciam na carne. Arte pode ser provocativa, mas às vezes a provocação leva a reações à sua altura.

Em minha primeira obra pública, fiz exatamente o contrário de uma provocação ao público. Em 1990, a cidade de Reston, em Virginia, perto de Washington DC, precisava de um centro. Nesse centro queriam uma fonte. 

Desenhei a Mercury Fountain como alguém que teria lido tudo sobre a arquitetura pós-moderna sem jamais ter visto sequer um exemplo dela. A fonte, em mármore e bronze, é luxuosa e parece antiga, como se fosse do século XIX. E o povo adora: casamentos, que deveriam ter lugar no hotel ao lado, são regularmente oficiados em frente à fonte. Depois de Minimalismo, Concretismo, Brutalismo e outros ismos, aceitos com grande relutância por parte do povo, uma volta ao passado pode ser uma provocação talvez à crítica, mas não à população em geral, pois esta gosta da beleza e do luxo. De qualquer maneira, esse trabalho não provocou nem mesmo a crítica. A palavra “monumento” originalmente vem do grego (mnimío) como algo a ser lembrado, um lembrete. Nos monumentos tradicionais, hoje em dia, a única coisa lembrada é o bronze e a figuração esmerada da academia do passado e, às vezes, a beleza feminina em alguma alegoria com seios nus. Tratando-se de trabalho contemporâneo, abstrações parecem ser completamente ignoradas pelo público, que, em geral, não as compreende. Esse é o enigma que é dado ao artista resolver; nada fácil…

Acho que o monumento é algo natural e necessário na paisagem urbana e que a mentalidade popular deve ser levada a sério. Compete ao artista fazer algo que a satisfaça sem, no entanto, diminuir o valor artístico. Isso é algo difícil e delicado, um verdadeiro desafio. 

Muitas das esculturas de sua exposição adotam o pequeno formato e resgatam a base (pedestal) das obras clássicas, embora não dispensem certa ironia, à maneira dos artistas conceituais. Fale um pouco sobre a presença do humor em sua escultura.

Essa exposição é, para mim, um poema sobre a infância, a adolescência e a inocência em geral. Talvez haja passagens engraçadas, mas tenho certa aversão ao humor proposital na arte, e principalmente ao cute. Noguchi, Calder, Miró, Max Ernst, Moore e mesmo Brancusi fizeram algumas obras que eram ligeiramente grotescas, mas nenhum deles se deu ao luxo de fazer-se bufão. A arte é uma dança sobre o fio da navalha. Das Três Graças que sobre a arte presidem, junto a Aglaia, que é brilhante, Thalia, que é abundante, a mais importante é Sofrosine, a medida, a proporção, a moderação.

Sempre amei o Modernismo e integrei elementos desse movimento no meu trabalho. Talvez esse fato tenha deixado algum modernista irritado, mas a minha intenção sempre foi de homenagem, jamais de crítica.

As esculturas dessa exposição são pequenas, mas, dentre elas, a menor, Capoeira, foi concebida para ser gigantesca. Deveria ter sido feita com quatro metros de altura.  Duas delas têm simetria bilateral, Spinario e o Panguri, ao passo que as outras têm estrutura circular. Infante, em princípio, deve girar ou dar cambalhotas quando caminhamos a seu redor, porque diferentes partes se tornam membros diferentes, ou cabeça, dependendo do ponto de vista.

Estão todas em pedestais brancos imaculados para que fiquem à boa altura para serem vistas. As peças nesta exposição eram um enigma para mim. Elas eram importantes, mas eu não sabia o porquê e nem o que as unia num grupo coerente. Passaram-se semanas ou meses até que me dei conta, numa epifania fulgurante, do que elas eram. Todas estavam conectadas intimamente aos meus anos de criança; é como se as sensações, estados de espírito de minha infância, se houvessem cristalizado naquelas formas. Um poema sobre nossa infância.