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2023
VIR AO MUNDO PARA SER PEDRA
Por
Ana Maria Amorim

Acabou-se a história e morreu a vitória: o Imperador da Mata-Virgem, Macunaíma, sobe aos céus como estrela. Vai ser brilho das noites. Declarou: “não vim no mundo para ser pedra!”. De alma tão inconstante, o herói de Mário de Andrade não cria limo. O escritor deixa clara a inspiração para escrever o personagem: a cosmovisão partilhada por povos da Amazônia. Makunaima, ao contrário, dispensaria uma forma ou uma gênese. Força, espiritualidade e devolvedor da vida, ele é artista da transformação, assim como Jaider Esbell, seu neto. Quem nos diz é o próprio artista macuxi, em relato na revista Iluminuras (2018), relembrando que o seu avô tem outra materialidade, sonoridade e sensitividade, habitando um tempo contínuo da história e da geografia no qual se transformar em pedra não é destruição nem ser impassível. Seu parente, o artista wapichana Gustavo Caboco reverbera o convite de ouvir as histórias de quem veio ao mundo, sim, para ser também elas: as pedras.

Pois foi lá das constelações de seres, onde estão os corpos celestes, que uma massa se deslocou. Bendegó riscou o céu em chamas e se deitou no sertão baiano. O meteorito, já frio, fez brilharem os olhos da metrópole: queria Portugal saber se dali alguma prata saia, indício de jazida. Bendegó, mesmo sem valor extrativista, vira estrela da ciência meteorítica, que disseca a rocha nos seus pobres ferro e níquel. O Imperador, agora o do Brasil, ordena a remoção do corpo para a capital. A imprensa nacional publica, em 1888, o relatório do meteorito. Meteorito? Gustavo Caboco risca, refaz: pedra. A capa e a décima quinta página da publicação oitocentista é a base da instalação Relatório de Bendegó Indígena (2021). Estão postas sobre uma base com o característico vermelho do artista, com os seus também vermelhos desenhos, grafismos, linhas e escritas.

Ouvir a pedra
Oito estrelas de resina, com pedacinhos de Bendegó dentro de cada uma, entrelaçam as duas páginas. Uma para cada museu listado entre as instituições que possuem fragmentos da massa de meteorito. Museu também é a casa da sua maior parte: em lugar de destaque, Bendegó ocupou por décadas a entrada do Museu Nacional e, por razões óbvias, resistiu ao incêndio do antigo palácio da corte portuguesa e da família imperial. “Espalharam nossos pedaços por aí”, escreve Caboco no documento. Em outros rabiscos, a até então remoção do meteorito é agora deslocamento forçado, realçando uma subjacente vontade da pedra em resistência ao ato de violência praticado pelo Império. Se o relatório oficial se refere a Bendegó como meteorito, em Caboco o termo é substituído por vovó da terra. Renomear o objeto classificado pelo supostamente neutro linguajar científico, pela ação imperial e problematizar a concepção dos corpos que habitam o mundo é uma constância nas obras do artista.

A exploratória ciência europeia está presente. Na página do documento usada por Gustavo Caboco, há a informação que Bendegó foi visitado, em 1820, pelos naturalistas Spix e Martius. Os viajantes bávaros catalogaram o que chamavam de natureza brasileira – fauna, flora, paisagens e, em continuum, indígenas. Hachurados no relatório, os prestigiados nomes do século 19 retornam em outras obras do artista. Em Kauzaza Engole Bendegó Através da Bahia (2021), o suporte é um livro dos dois cientistas. Aberto nas páginas que citam o meteorito, o artista sobrepõe nas folhas, em vermelho, o desenho de uma cobra dando o bote em um pedaço da pedra. Kauzaza há de engolir o objeto celeste-terrestre, alimentando a energia vital que transcende as categorias fixas da natureza de museus. Não se consegue ler, mas o texto encoberto pela pedra dava conta dos recorrentes boatos de minas de prata pelo interior do país. O sonho extrativista é uma permanência, mas Caboco adverte: “Tem um brilho dentro que não é possível extrair”.

Essa frase está em Recado do Bendegó: Conversas com a Pedra (2021), livro de autoria compartilhada (entre o artista e a pedra), produzida para a instalação Kanau’Kyba (Caminhos da Pedra), exibida na 34ª Bienal de São Paulo. No livro, logo após a cobra engolir a vovó, pergunta-se: “– Mas como é que você chegou aqui no Museu Nacional do Rio de Janeiro, então?”. A resposta estaria no sorriso-ciência, na colonização da pedra. Nesta singularidade dupla, a pedra-alienígena de outros céus e a pedra-indígena-avó partilham a condição de serem estranhadas e expostas, vivas, no museu — tal qual os indígenas botocudos, do Espírito Santo, foram dispostos como objetos curiosos na Exposição Antropológica do Museu Nacional, de 1882. Nas obras do artista, a prática de zoológicos humanos se estende ao mundo natural, apartado do mundo humano por uma racionalidade autointitulada moderna.

Tal qual a pedra-avó, mantos tupinambás, bordunas wapichanas e corpos indígenas, estão nos museus as representações artístico-científicas de, novamente, Spix e Martius. A gravura feita pelos naturalistas de indígenas botocudo e coroado, ambos de perfil, medindo suas partes e arquivando seu conhecimento, é base de outra obra de Caboco. Em Botocudo e Coroado Sem Nome (2021), ele anota: “Do dia que fui/fomos expostos no museu”. Conjuga o mesmo verbo em distintas pessoas, porque são as mesmas: partilham identidades nessas continuidades do Oitocentos na contemporaneidade. Com o rosto bordado, o coroado tem medições e ramificações. O botocudo, além de contornos, tem bordada a cópia exata de um desenho astronômico que consta no relatório de Bendegó: nesta órbita meteorítica, há diferença entre indígena e alienígena?

violência epistêmica-cultural, como escreve em Baaraz Ka’Aupan (Campo em Chamas, 2021), desenho-documento que faz parte da mesma instalação, não está distante. Caboco mostra que colhemos o fruto da monocultura e do monopensamento. Habitamos esta repetição. Pelas rupturas de nossas paisagens, percebemos: o século 19 é logo aqui. As obras do artista incitam a pensar uma arqueologia dos céus e das terras, habitados por orgânicos e inorgânicos seres e forças, reivindicando a existência viva das estrelas, cobras, cores, pedras, minérios, bordunas e chamas. Escava o Oitocentos e encontra, muitas vezes, o presente. Por fim, a pedra canta: não acabou-se a história.

Ana Maria Amorim participou do Laboratório de Escrita Crítica e Editorial da seLecT_ceLesTe na plataforma Zait. Atua como produtora cultural e divulgadora científica. Mestre em Cultura e Sociedade (UFBA) e doutora em Literatura Comparada (UFF)