Toda forma guarda uma vida.
O fóssil não é mais simplesmente um ser que viveu,
é um ser que vive ainda, adormecido em sua forma.
— Gaston Bachelard, A poética do espaço
Pelos e cabelos se alastram por toda parte, pouco a pouco enfurecendo as superfícies – ora mais selvagens, cobrindo os corpos como artifício ambíguo de repulsa e fascínio, ora mais dóceis, sob trança ou pelúcia, buscando nos atrair amistosamente para suas armadilhas... De um jeito ou de outro, tudo aqui quer dar o bote, tudo é monstro. Nesta exposição, a segunda a aproximar as produções de Julia Gallo e Marina Woisky,¹ o que está em jogo é uma desordem de significação, fruto do gosto em estressar aquilo que conhecemos. Apesar de ainda restarem imagens, elas se apresentam como expressões materiais de um conflito, estão em estado de revolta, como fragmentos revirados que nos conduzem a uma zona de indeterminação sígnica. Contorcidas, enervadas, repletas de textura e granulação, são formas que lançam mão do dispêndio e de certa força libidinal para despertar um torpor da visão, aproximando-se do baixo materialismo batailleano.
Tais aspectos são efeito de uma ampla experimentação de materiais e procedimentos. Desenho, colagem, pintura, fotografia e escultura se põem em negociação. Apesar de suas especificidades, Marina e Julia são produtoras de uma visualidade estranha e ameaçadora dos limites entre sujeito e objeto, animado e inanimado, interessadas em desclassificar as formas, confundir-nos, trapacear as categorizações.
No caso de Julia Gallo, as obras são como sombras densas e nebulosas, cujo apelo gráfico advém não apenas do carvão que risca a superfície, mas também da tesoura que corta o papel. Banhadas em café, elas ganham um senso de unidade que nubla os contornos e não faz distinção entre as diferentes partes da composição, embaralhando nossa percepção. Um olhar atento, porém, será capaz de identificar fragmentos antropomórficos e zoomórficos que nunca se completam, como miragens guardadas na fumaça amorfa, imagens-segredo em mutação. Sua superfície pulsa pouco; antes, nos convida para dentro, introspectiva. O que guardam consigo é uma dimensão enigmática ou mitológica, de difícil localização no espaço-tempo.
Apesar de sua expressividade corporal dialogar com os clássicos estudos de anatomia e os desenhos de observação, sua relação com a tradição busca despertar o que está adormecido sob a precisão do desenho. Se a história da arte ocidental reconhece na linha “a estrutura básica da ideia”, aqui o raciocínio projetivo dá lugar às fantasmagorias, à fantasia psíquica das visões. O gesto gráfico de Gallo não quer organizar o mundo, mas adensar as sombras, essas formas negativas que, ao contrário do reflexo (no qual o duplo é convergência mimética), são indícios de uma misteriosa alteridade. Com algum flerte pictórico, o desenho almeja não a nitidez do traço, mas a bruma ou a mancha, informes o suficiente para que projetemos nossos anseios.² É algo do assombro que ela perscruta.
Marina Woisky, por sua vez, atua como uma taxidermista que dá carne e esqueleto à pele das imagens. Suas referências vêm do universo kitsch dos antiquários e coleções privadas repletas de itens exóticos de tão diversas origens, capazes de converter feras brutais em ornamentos dóceis. Se o ímpeto decorativo tende a domesticar aquilo que toca, a artista trabalha para despregar tais formas de sua condição secundária, alterando a escala, intervindo nas composições, imprimindo-as em tecido, costurando-as e, finalmente, preenchendo-as com cimento (que, aos olhos, mais parece carne macia). Leões, alces, carneiros, cavalos, ursos, cachorros, antes atados a troféus de caça, moldes de taxidermia e outros objetos decorativos adquirem uma nova aparição grotesca, como se recuperassem alguma animalidade. Às imagens é dada uma nova vida; as bestas despertam, mesmo no cerne do simulacro. Ironicamente, elas recuperam algum ruído do mundo natural, para o qual nossos códigos de linguagem estão sempre fracassando.
Não há, no entanto, moralização desses sucessivos processamentos da imagem. O grottesche, ao conciliar ornamento e figuração (a aparente contradição romana daqueles que decoravam paredes com formas monstruosas, como descrevia Vitrúvio), criou métodos de convivência entre padrões de beleza clássica, metamorfose, delírio e extravagância. Os fac-símiles esculturais de Woisky são criaturas que não se contentam em ser apenas elas mesmas, performam a si como híbridas, simulando outras identidades. É do mundo das aparências que estamos tratando, mas não para condená-las. Do animal original ao ornamento, do ornamento à fotografia, da fotografia ao tecido, do tecido à escultura, estrutura-se uma cadeia de traços visuais que acumulam tempos anacrônicos e heterogêneos, ainda capazes de tocar o presente através de recursos de mutação.
Chama atenção ainda o fato de que, em ambas as produções, há situações constantes de caça e predação que se expressam através de bocas agônicas, corpos-volutas retorcidos e sinuosos, alérgicos a qualquer linearidade. Como um bater de asas capturado num âmbar, elas condensam rastros de movimentos que parecem apenas temporariamente congelados, são a captura do momento que imediatamente precede ou sucede um gesto, como se guardassem consigo certo potencial disruptivo, na iminência de um novo despertar. Juntas, lembram-nos de que toda forma guarda uma vida, e que as imagens, longe de serem passivas, estão sempre à beira de uma convulsão.
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1. A primeira, intitulada Ato, foi realizada em 2022 no espaço independente 25M, localizado na Galeria Metrópole, no centro de São Paulo.
2. Curioso notar que a origem do desenho é narrada através de um mito que envolve a sombra, descrito por Plínio, o Velho: “Muito já foi falado sobre a pintura, convém agora falarmos sobre a plástica. Butades, um oleiro de Sícion em Corinto, foi o primeiro a fazer imagens em barro e as inventou a partir de sua filha, que, tomada de amor por um jovem, antes que este partisse em viagem, inscreveu em linhas na parede a sombra de seu rosto iluminado por uma lamparina. Seu pai pressionou argila sobre o contorno e fez um relevo, que foi endurecido no fogo com o resto de sua cerâmica; e é dito que essa imagem foi preservada no Santuário das Ninfas até a destruição de Corinto por Múmio” – Plínio, 23-79.
São Paulo, Brasil
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