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2023
A expedição Anomalia da Solidão, de José Bento
Por
RICARDO SARDENBERG

Estava bem quando contemplei o céu!
Mas senti-me inquieto quando pensei nas nuvens…
Estava bem quando contemplei o grande oceano!
Mas senti-me inquieto quando pensei nas ondas…

(Milarepa: iogue, poeta, mestre do budismo tibetano)

A linha reta potencialmente esconde um círculo. O círculo visto de lado é uma linha reta. Desses dois elementos simples, imateriais, geométricos e matemáticos, brota a diversidade da vida, da cultura, da história, da matéria e da espiritualidade da arte de José Bento: o trauma desse encontro, a cisão entre o infinito representado pela linha, que pode ser círculo, e a diversidade das coisas no mundo, no ciclo da vida à morte, ciclo que em muitas tradições não ocidentais eternamente se repete ou, em outras tradições, pode ser linha reta eterna que nunca tem fim.

Nesta exposição, ou talvez fosse melhor chamar de “expedição”, Anomalia da Solidão, José Bento convida você a caminhar até o fim, começando pela vida regular dos pica-paus — esses seres que vêm do céu para fazer do interior de uma árvore o local onde criam uma família, se reproduzem, se alimentam, fazem sua casa e morada —, atravessando, em seguida, o grande salão continental que representa essa terra de desterrados que é o Brasil e a contemporaneidade, para chegar à morte, ao caixão-nave, o Navio Tumbeiro que quebrou as ondas do mar e se assentou diante do assombro do monocromo, este que é provavelmente o maior ícone da arte moderna. Assim, do pó ao pó, dando-se meia-volta e caminhando de volta da morte para a vida, faz-se a luz, e aquilo que era uma linha reta que levou ao encontro da escuridão infinita se torna um círculo contínuo de renovação.

São muitas as histórias contadas nesta expedição. Mas a história principal é o antropoceno e sua viciada marcha suicida. Como chegamos até aqui também pode ser uma espécie de guia de sobrevivência para a humanidade, por meio da atualização da memória. O Navio Tumbeiro Quebrando as Ondas do Mar — carregado de seres-árvore, uma floresta transportada, negociada, vendida, comodificada, assim como os corpos sequestrados, comercializados, transformados em coisa, a migração forçada do cativeiro escravo, transplantados para esse desterro com a marcação da morte e da exploração — quebra a morte, como na gíria popular “quebrar é matar”. Aqui, a morte é um oceano informacional. Um ouroboros comendo a própria cauda, a matança da morte é a única possibilidade de vida.

Da “terra à vista” da Calunga Grande, representada por um oceano de serragem de Jacarandá onde está assentado o Navio Tumbeiro Quebrando as Ondas do Mar, vê-se a floresta de pé, feita de troncos fortes e duros, árvores imponentes daquilo que um dia foi a Mata Atlântica, e quem sabe um dia voltará por cima dos corpos ingratos e avarentos dos humanos. Em terra firme na Calunga Pequena, feita com serragem de madeiras da Mata Atlântica, um espírito da mata que regressa com toda a sua variedade de cores, cheiros e texturas, são elas: Jacarandá-Caviúna, Jacarandá Tam, Braúna-Parda, Braúna-Preta, Bálsamo, Itapicuru, Amarelinho, Pau-Pereira, Vinhático, Peroba-Rosa, Peroba-do-Campo, Peroba-Açu, Sapucaia, Louro-Faia, Pau-Brasil, Caixeta, Cedro-Rosa, Cedro-Amarelo, Garapa, Angelina, Carvalho, Cerejeira, Câmara, Folha-Larga, Oiticica, Freijó, Jequitibá-Rosa, Jequitibá, Amapá, Cumaru, Aroeira e Murocatiara. Mais adiante, solitário, flutuando numa espécie de purgatório feito de Bálsamo que exala o cheiro doce da vida e da morte, encontra-se o majestoso tronco de Peroba-Rosa que dá nome à exposição: Anomalia da Solidão. Este tronco contém a história do passado e do presente, viveu aproximadamente 250 anos dentro de uma floresta com suas mães, tias, avós, bisavós, filhas, netas e bisnetas, até que certo dia, há uns oitenta anos, o patriarcado humano veio e, entre a ignorância e a ganância, submeteu toda a família que compunha uma exuberante mata a deitar-se — outra gíria para morte —, deixando apenas a Peroba-Rosa, que tinha um tronco liso como uma vela, solitária, no campo desmatado. Podemos imaginá-la sozinha, imponente no campo morto, onde nem um pé de limão poderia nascer (como conta José Bento). Da sua solidão, a copa da árvore foi descendo para tentar se proteger, se manter viva, procurando encontrar contato com seus familiares que lá não estavam mais. Ao longo de setenta anos, lutou pela vida até que, nos últimos instantes, surgiam no seu tronco deformado pela solidão apenas nós grossos na tentativa de lançar os últimos galhos para a vida, e assim como num estremecimento, num sopro final, morreu. Agora ela pode ser descrita como o trecho de um tronco de uma árvore que morreu deixando aos olhos vistos a anomalia da solidão, depois que derrubaram (mais uma gíria para morte) a floresta à sua volta, a sua família, e que retorna ao mundo hoje para assombrar os vivos, numa espécie de exílio, uma migração forçada de quem insiste em viver. Ela ressurge na tumba sagrada do circuito da arte.

Ao final (ou seria o começo da expedição?), o Navio Tumbeiro flutua numa maca de corredor de hospital público, um monolito na Odisseia no Espaço, uma nave-escultura magnética que suga tudo para sua presença; um colapso, um sumidouro, um buraco negro potencializado pela referência do caixão de Braúna maciço e corpóreo que navega em direção ao monocromo de Jacarandá escuro. O monocromo: aquele ícone maior do infinito e da transcendência impossível da arte moderna. Por um lado, o tsunami da totalidade unitária; por outro, o caos da diversidade de toda aquela serragem de Jacarandá que revoa como pássaros que deitam (morrem) na tela. O monocromo: a unidade que suga todas as possibilidades da diversidade diante da elevação de um espírito infinito e universal. O silêncio da anomalia da solidão. A morte. A força imantada. Como cantaria Clementina de Jesus em No Limite do Mar: vou-me embora desse mundo de ilusão. Duchamp concordaria. 

Não existe solidão maior que a experiência da morte. Pense naqueles últimos instantes antes de partir: quando o momento chega, toda anomalia surge como doença — ou talvez como liberdade. E se a liberdade comodificada e vendida diariamente pela democracia liberal não for mais que isso, o olhar do vigia, do pica-pau que cria sua família sob a vigilância da câmera? O círculo e a linha do Instagram, a selfie narcisística, infinita, o momento em que se morre um pouco para viver e se vive podando uma pequena parte de si para a morte, quando atrás do morro não há mais morro, o último morro, o sopro na palma da mão do bater paó, solitário, como um ritmo sincopado para a vida.