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2023
Alex Červený: Mirabilia
Por
Renato Menezes

Alex Červený: Mirabilia
Renato Menezes

 

Devíamos poder preparar os nossos sonhos como os artistas, as suas composições. Com a matéria sutil da noite e da nossa alma, devíamos poder construir essas pequenas obras-primas incomunicáveis, que, ainda menos que a rosa, duram apenas o instante em que vão sendo sonhadas, e logo se apagam sem outro vestígio que a nossa memória.[1]

— Cecília Meireles

 

Suponho, na infinidade dos mundos, um mundo em que se produziu um primeiro milagre, a vida; nesse mundo, entre numerosas espécies que repetem a cada geração um destino inalterável, uma raça industriosa, ávida por modificar seu futuro.[2]

— Roger Caillois

 

Agradável na melodia, curiosa na grafia, essencial no significado e incomum no uso prático, a palavra mirabilia abre uma porta de acesso à obra de Alex Červený. Ora como bússola, ora como lanterna, ela nos ajuda a percorrer os meandros de seu universo particular. De origem latina, mirabilia é palavra polissêmica, da mesma raiz do adjetivo mirabilis, do qual derivam, por exemplo, “milagre”, “miragem” e “maravilha”. Mirabilia designa também um gênero da literatura latina medieval, precursor dos modernos livros de viagens, reais ou fantásticas. A tradição literária ocidental nos oferece alguns exemplos de uso desse termo. O mais expressivo entre eles talvez esteja no título de um manuscrito medieval, De Mirabilibus urbis Romae, utilizado por muitas gerações de peregrinos e turistas como um guia prático da Cidade Eterna, espécie de lista de ruínas e relíquias incontornáveis para os errantes interessados em reviver o esplendor do passado imperial. Diferente da memorabilia, prática definida pelo acúmulo de objetos que guardam a memória de alguém ou de um evento de interesse específico, a mirabilia diz respeito a uma experiência íntima, mágica, misteriosa e imaginativa, desvinculada do racionalismo cartesiano que tanto se empenhou em produzir justificativas de dominação do homem ocidental sobre as demais formas de vida. A mirabilia ocupa, portanto, uma zona sem fronteiras, marcada apenas pela sutil transição entre ciência, consciência e inconsciência; avessa aos extremos e íntima das imprecisões infinitas que povoam as nuances, a mirabilia poderia perfeitamente nomear um pacto de reconciliação firmado entre a physis e o nomos, em benefício da imaginação como recurso vital do ser.

Embora as palavras “milagre”, “miragem” e “maravilha” tenham encontrado destinos diversos e usos prá- ticos autônomos, estão ancorados, na origem comum delas, os problemas fundamentais que, de maneira inextricável, repousam sobre a obra de Červený. A densidade narrativa que nasce do encontro entre o ver e o saber, a função escópica da visão como origem e fim de tudo, a primazia da mão sobre a máquina e a amplitude da dúvida sobre o que existe como realidade ou ficção emanam de uma grandeza cósmica encerrada nos detalhes. Na obra de um artífice diligente, calígrafo inventivo, tudo cabe nos pormenores: do ponto à mancha, do grão ao monte, é sempre o traço delgado do pincel que marca o ritmo do olhar apaixonado e nos aproxima da topografia dos afetos em que se represam os gestos mínimos. É no reencontro entre o olho e a mão que a mirabilia se manifesta como “maneira”: conduzido pela linha, que é desenho, coisa e palavra, limite, risco e enigma, o traço se impõe como marca durável no tempo da vida, origem e destino, bula da existência e índice indelével da passagem de quem tem a habilidade de transformar em joia a matéria bruta. Trabalhadas como miniaturas, áreas inteiras de céu e amplas zonas de terra são ocupadas por desertos pedregosos, áridos maciços, vulcões, florestas e cidadelas; por vezes com- parecem ilhas oceânicas, rios sinuosos, lagos, fontes e vapores móveis; figuras flutuam livres da ação da gravidade e palavras se organizam como rizomas, com engenho, método e desconcertante humor de quem se apega ao ornamento da oração. Nessa paisagem aparecem imagens de sonhos e fantasmas, ícones pop e figuras mitológicas que se fixam em nossas retinas. Mensagens hieroglíficas, artifícios e segredos incontáveis se desenredam com o cuidado de um ourives, a atenção de um colecionador e a elocução de um contador de extraordinárias histórias, restituindo à mirabilia aquilo que ela possui de fantástico.

Na obra de Alex Červený, o fantástico se afirma não somente como categoria estética, mas como ethos de um viajante atento e solitário:[3] é na solidão, esse sentimento universal, que todo mundo se encontra e se identifica. Em estado contemplativo, o viajante se reporta ao passado e, diante dele, se pergunta como tal composto alquímico, produto da interação entre lembrança, história e desejo, pode se oferecer como fonte de inesgotável matéria-prima. Atravessando todas as camadas da realidade, cujas espessuras deverão ser renegociadas pelo espectador,[4] o fantástico redesenha os limites entre o estranho e o lúdico, entre o encantamento e o assombro, e refunda a ordem universal baseada nas certezas do espírito, na intuição e nos sentidos. Faculdade da alma, habilidade cognitiva ou criação involuntária de imagens mentais, a fantasia, essência daquilo que é fantástico, se define, na obra de Červený, como uma experiência profundamente idiossincrática e desacompanhada, intrínseca ao exercício cotidiano da meditação. Tal como no sonho, as imagens ali organizadas imantam-se em uma lógica toda própria, enigmática e individual, sem qualquer compromisso com a verdade ou com a razão: apenas no sonho é possível lembrar dos tempos anteriores ao da criação e posteriores ao do grande cataclismo. Deambulando em direção ao vazio, em um grande nada perigoso e silencioso, as figuras estatuínas de Červený definem a escala monumental da arquitetura cósmica: a partir delas mede-se o incomensurável pé-direito da abóbada celeste, e as distâncias são estabelecidas em função dos seus passos. Quanto mais o homem pode andar, mais ele pode conhecer, melhor ele consegue definir as paredes de seu alcance e mais sedimentadas se tornam suas memórias. É sempre a elas que ele deverá regressar ao fim do percurso, afinal essa é a única garantia que lhe resta. Não é necessário olhar por muito tempo o rosto antedi- luviano dessas figuras para adivinhar a vontade do artista em situá-las fora do tempo do calendário,[5] em um lugar em que a criação se deixa ser confundida com a reconstrução. De idade indeterminável, essas figuras parecem reféns do “atavismo de uma fantasia robusta”,[6] condenadas a um eterno e vertiginoso retorno do mesmo.[7] Antes de tudo, elas nos ensinam que todo lugar é uma invenção, mesmo quando ele existe.

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O número 29 da revista Arte em São Paulo, publicado em março de 1985, apresentou um editorial reunindo 23 artistas, além de colecionadores e marchands, com o objetivo de avaliar a arte contemporânea brasileira, refletir seus novos valores e identificar seus principais “centros irradiadores”. Nesse espaço, eles deveriam elaborar suas concepções de arte, levando a cabo as premissas da revista, cujo design arrojado (em formato de caderno de desenho, com capa rígida e espiral) refletia a urgência da retomada experimental e a necessidade de espaços de pensamento da celebrada geração de artistas emergentes nos anos 1980. Entre os artistas, um dos mais jovens era Alex Červený, então com 22 anos, em cujo currículo figurava apenas uma exposição individual, realizada no ano anterior, por indicação de Valdir Sarubbi, seu amigo e professor, em uma galeria de Belém do Pará. De formação independente, longe dos bancos das universidades de São Paulo, onde nasceu, cresceu e vive até hoje, e livre dos grandes agrupamentos artísticos daquele período, Červený dividia-se, à época, entre o ateliê de Selma D’Affre, com quem aprimoraria seus conhecimentos de técnicas de impressão, e o picadeiro, onde incorporava o personagem “Elvis Elástico: o Homem de Plástico”, alterego que se materializaria, mais tarde, nas suas célebres figuras retorcidas em si mesmas, feito parafusos. Em seu texto, ele faz um exame de sua geração, ao mesmo tempo em que procura nela um espaço para se acomodar:

Minha geração tem registrado uma série de constatações a respeito do mundo moderno. O que antes era visto como ficção científica, tornou-se realidade: a televisão, o raio-laser, as microondas, os satélites, os foguetes, os cometas, os prenúncios do apocalipse e a proximidade com o tão celebrado ano 2000. Tudo isso mexe muito com a minha cabeça. Estamos numa época muito fértil para a criação. Mas há uma coisa que me incomoda e assusta: tudo é muito aparente e veloz.

Meu trabalho está mais voltado para o passado. Gosto de história. Velhas cartas e mapas me guiam. Às vezes, me sinto como um desses artistas que incorporam espíritos. Faço muitos retratos imaginários. Antigos escritos e rabiscos, que eu mesmo fiz ou encontrei por aí, me fornecem o fio da meada que vou desdobrando e fantasiando em cima. O papel é o meu suporte favorito para executar os trabalhos.[8]

Com alguma dose de consternação, de entusiasmo e de angústia, Červený assistia ao anúncio de um tempo que, mal chegado, já era vítima da história, produto, talvez, da contradição daquele momento: a Geração 80, atravessada por um sentimento de desbunde, efusão e descrença no futuro, procurando reverter o trauma da ditadura e o dogma conceitual consolidado ao longo dos anos 1960 e 1970, seria brutalmente impactada pelo drama da epidemia de AIDS. As Diretas Já, o Rock in Rio e a exposição Como vai você, Geração 80?, que ocupou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 1984, marcaram o caráter especulativo, de sondagem do presente e de improviso imediatista de uma geração que convivia com o avanço do neoliberalismo sobre o mundo, com o medo do fim da história e com o assombro provocado pelas ameaças nucleares. As chamadas novas mídias já não causavam mais tanto entusiasmo porque já haviam se integrado à vida cotidiana, e a instabilidade hiperinflacionária acelerava o tempo daquela que fora considerada a “década perdida”. Enquanto a maior parte dos artistas fazia um movimento de retorno à pintura gestual em grande formato e voltava-se para o experimento de materiais não convencionais e para o acabamento precário, sem grande compromisso com a narrativa, Alex Červený parecia querer caminhar contracorrente: apegado aos pequenos formatos, ao fetiche dos papéis chineses e dos pergaminhos, às folhas de ouro e ao desenho esmerado, Červený abria cada vez mais espaço para a crônica e para o causo. Não foi por acaso que, nos anos 1990, enquanto os artistas entregavam-se à instalação e ao site-specific, confiando a técnica ao dispositivo e aos aparatos acênicos, Červený investiu tanto tempo nos desenhos de ilustração.[9] Quando, na segunda metade daquela década, decidiu experimentar as telas, é às narrativas que mesclam experiências pessoais com preocupações universais que Červený se ateria: Quem não chora não mama (1999), considerada pelo artista uma de suas primeiras pinturas, articula a lembrança das músicas brasileiras de um disco de vinil de seu pai com uma cena apocalíptica, provocada pela lembrança do avião Enola Gay, utilizado pela Força Aérea estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial no ataque atômico que devastou a cidade de Hiroshima. A festa e a guerra encontravam-se em uma espécie de imperativo de continuidade necessária, quase niilista, diante do caos certo, recurso que Červený retoma e aprofunda em outra pintura, Sair, fazer compras, ver gente bonita, pegar um cineminha! (2012), em que uma chuva de bolas de fogo não impede a força do desejo de ver a vida seguir. O imaginário do fim do mundo, o colapso da humanidade, o medo de extinção da espécie humana sobre a Terra, a reminiscência dos seus anos de formação na década anterior, tornaram-se marca in- delével de seu repertório mnemônico.

Hoje, com quarenta anos ininterruptos de uma carreira prolífica, e após assistir a quase duas décadas de crescente desinteresse pela pintura e renúncia da narrativa como elemento disparador da experiência artística, a obra de Alex Červený parece oportunamente reencontrar seus pares e exercer, sobre a nova geração de pintores, o papel de um justo predecessor. Ao completar 50 anos, o artista enfrentaria o aguar- dado desafio das pinturas em grande formato, passando em exame, dessa vez, sua própria vida. Em Para além do bem e do mal (2015), Červený promoveu o encontro entre seres espiralados e humanos encapsulados sob a terra com os títulos das músicas que dançava durante a adolescência, organizadas em listas que se avolumam em ramos que preenchem as copas ausentes das árvores ressequidas. Sobre a pintura, cinquenta pequenos objetos evocam os lugares que percorreu ao longo de meio século de vida e recontam a peregrinação de um artista cujo motor da criação se situa nos espaços mentais de transmutação incessante do erro, de equívoco em errância. Talvez o signo maior dessa transmutação esteja na repintura, marca de seu trabalho, índice de um artista inquieto e insistente, que não hesita em rever suas decisões artísticas, e cuja prática de ateliê lhe assegura o pleno domínio do seu trabalho. No avesso da aceleração estimulada pelas mídias sociais, das telas de luz azul, da vigilância das câmeras e do imediatismo provocado pela hiperconexão, o trabalho de Alex Červený é produto e produtor de desaceleração, demanda uma preparação e uma observação lenta e solicita ao espectador que abandone a facilidade das associações apressadas. Cada pequena figura que se desprende de seus pincéis ou de suas canetas estimula a emergência da miragem, do milagre e da maravilha; sua obra se apresenta como uma oportunidade providencial de construção onírica e de reimaginação do presente como gesto político.

Enquanto escrevo essas palavras, labirintos vertiginosos, paisagens lunares, emblemas flutuantes, mares retidos entre montanhas, crepúsculos fantásticos e seres enigmáticos aguardam sua aparição em duas pinturas panorâmicas, realizadas especialmente para a mostra da Pinacoteca de São Paulo, que este livro que o leitor tem entre as mãos procura modestamente refletir.

 

 

[1] MEIRELES, Cecília. “Escolha o seu sonho”. In Escolha o seu sonho. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001, p. 116. [1. ed. 1964].

[2] CAILLOIS, Roger. “Pierres contre nature”. In Pierres. Paris: Gallimard, 1966, p. 93. Tradução nossa.

[3] A obra de Červený renova constantemente o compromisso com as viagens, sendo ele próprio um intenso viajante. À título de exemplo, cito Um desenho visto do céu, livro em formato incomum, em que o artista relaciona desenhos, fotografias e relatos que reconstroem episódios reais e fantásticos vividos na viagem que fez em 2013 para o deserto de Sechura, onde se encontram as célebres Linhas de Nazca. Dividido em caixas organizadas em forma de pirâmide escalonada de base quadrangular, esse material totaliza um conjunto de dez capítulos que são narrados à medida que o artista desmembra o trabalho. Em outro livro, Todos os lugares, título homônimo de uma exposição realizada em 2019 na Casa Triângulo, Červený organiza uma espécie de glossário das coisas que viu nas viagens que havia realizado até o momento. Para isso, Ver ČERVENÝ, Alex. Todos os lugares. São Paulo: Circuito, 2019.

[4] A esse respeito, ver TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2017.

[5] Evoco aqui a passagem do ensaio “A busca do absoluto”, que se encontra em SARTRE, Jean-Paul. Alberto Giacometti. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2012.

[6] PETRÔNIO, Rodrigo. “Os lugares imagens de Alex Červený”. In ČERVENÝ, Alex, 2019, op. cit., p. 172. O texto é retomado em “A esfera imaginal de Alex Červený”, Amarello, n. 36, 2020. Disponível em: https://amarello.com.br/2020/12/arte/a-esfera- -imaginal-de-alex-cerveny/.

[7] Evoco aqui a teoria do eterno retorno do mesmo, elaborada por Friedrich Nietzche, no aforismo 341 de A Gaia Ciência (1882).

[8] Arte em São Paulo, n. 29, mar. 1985.

[9] Por mais de uma década, entre o fim dos anos 1990 e os anos 2000, Alex Červený colaborou intensamente com Barbara Gancia, inicialmente em sua coluna na Folha de São Paulo e depois na Revista São Paulo. Importa ressaltar que Červený ilustrou dezenas de livros, entre os quais se destacam Vejam como eu sei escrever (Ática, 2001), de José Paulo Paes, As aventuras de Pinóquio (Cosac Naify, 2012), de Carlo Collodi, Decameron (Cosac Naify, 2013), de Giovanni Boccacio, e Fábula sobre o começo do mundo: histórias da mata virgem (Laranja Original, 2017), de Maria Cecília (Quilha) Gomes dos Reis. Em 2005, Červený apresentou um conjunto de desenhos de ilustração na Estação Pinacoteca.