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2023
A linha pela ausência
Por
GIANCARLO HANNUD

Formalmente hermética, austera e frugal, a obra construída por Cassio Michalany ao longo dos últimos cinquenta anos se apresenta, por sua coerência e constância, como das mais excepcionais no panorama da produção artística brasileira. Centrada nas questões formais da arte, silenciosa e ruminante em suas proposições, ela pode ser comparada, sem perigo de exagero, à vida monástica, regida como é por regras preestabelecidas e pautada pelo equilíbrio, pela discrição, pela rígida manipulação da vida e a repetição meditativa dos dias e suas coisas. Porém, ausentado das preocupações espirituais ou metafísicas do existir monacal, o trabalho de Cassio Michalany se torna, por sua obsessiva iteração, um exercício formal da liberdade da repetição, pois é pela repetição que ele assume sua força. Fechado, resiliente, ordeiro, bem como simultaneamente simples e complexo em suas artimanhas formais, Michalany reduz, numa economia restritíssima de recursos, o fazer artístico a seu menor elemento. Blocos de essências anônimas que ao se relacionarem uns com os outros se transformam em algo diferente, revelando-nos o mundo e nós mesmos com novos olhos.

A presente exposição reúne parte da produção recente do artista, dois conjuntos de relevos datados entre 2020 e 2022, e três desenhos de quase uma década antes. Neles observamos a manipulação mestra de Michalany de elementos idênticos. Placas de madeira são pintadas num número restrito de cores atônicas, na aparência anônima do trabalho industrial, sem gesto, sem marca ou singularidade, o fazedor tornado desaparecido do objeto – “quanto menos ruído tiver, melhor”, diz o artista. Elas são, então, arranjadas em combinações pela igualdade de partes, por vezes fronteiradas por finos filetes de madeira invariavelmente pintados de branco, e parafusadas em uno. No caso dos trabalhos expostos, observamos o invariável da linha, seja pela junção de duas partes díspares, com a linha proclamando-se por sua ausência, ou pela junção apartada de dois campos de cor por meio de um filete branco, com a linha tornando-se presença. Essa onipresença da linha no trabalho já foi apontada por Miguel Chaia, importante e constante interlocutor de Michalany, em escritos sobre a produção do artista. Mas, ao mesmo passo que presença, ela também é, nesses casos, dupla ausência, os dois campos de cor criando trincheiras de vazio, linhas ausentes, quando unidos pelo branco do filete. O resultado são blocos de cores arranjados num relacionar mútuo de partes que nunca se revelam pelo que são.

A igualdade das partes desses trabalhos poderia facilmente se transformar em monotonia de resultado, não fosse o potente e ressonante silêncio que acompanha o ajuntamento obsessivo desse fazer e as sutis e silenciosas manipulações que alteram no todo a repetição do conjunto. Por sua própria natureza, essas pinturas-construções relacionam-se inexoravelmente com a produção anterior de Michalany, criando paralelos e sugerindo mutações de intenção, e, mais importantemente, com o mundo à nossa volta. Como escreveu Tiago Mesquita, na obra do artista, “nada fica imune de se relacionar visualmente”. Tal relacionar só pode ser efetivado através de nosso próprio olhar e, consequentemente, de nossas sensibilidades e de nossos espelhos projetivos.

Descrever esses relevos não é tarefa das mais relevantes, já ensaiada tantas vezes por muitos daqueles que se ocuparam da obra de Michalany, e pouco pode nos oferecer de verdadeiramente valioso. Contemplá-las é o suficiente para que elas se revelem. Basta um pouco de atenção, cuidado e tempo para que elas se mostrem em suas individualidades monótonas. No entanto, o anunciar da linha como elemento integrante do conjunto ora apresentado parece carregar certa importância. Mais ainda, parece ser primordial para o entender de certa leveza de mão poucas vezes apontada no corpo de trabalho de Michalany. A linha suspirada, surgida do encontro de placas policromadas, é a chave da delicadeza de sua produção, e é na repetição do espaço mínimo existente entre placas, placas e filetes, ou telas, que reside o anúncio da ossatura de seu fazer. É pelo que está ausente e em derredor que seus trabalhos se tornam irresistíveis em suas variações. Por meio das mínimas sutilezas de suas diferenças, eles nos devolvem à vida com novos olhos, à semelhança daquilo que o crítico Rodrigo Naves apontou como um “aperfeiçoamento do olhar”, o que já não é pouco. Ou melhor, já é muito.